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Muitos discos, alguns filmes, séries e livros de vez em quando, concertos quando sobra tempo

Muitos discos, alguns filmes, séries e livros de vez em quando, concertos quando sobra tempo

Quando dançar é o melhor remédio

Sala esgotada, máquina bem oleada, devoção incondicional: o regresso dos HERCULES & LOVE AFFAIR a Lisboa, esta sexta-feira, trouxe o álbum mais vulnerável do projecto para sarar feridas na pista de dança. Mas foi uma festa na mesma, ainda que não tenha suplantado memórias de visitas anteriores.

 

Hercules & Love Affair

 

Com "Omnion", o muito fresco quarto álbum, editado em setembro, os HERCULES & LOVE AFFAIR voltaram a confirmar que são mais do que um fenómeno sazonal decisivo para a reabilitação de sonoridades disco há dez anos - altura na qual foi editado o longa-duração de estreia homónimo.

Álbum após álbum, o projecto criado por Andy Butler tem sabido moldar-se às viragens recorrentes da música de dança, com mudanças de vozes e géneros pelo caminho, sem perder o apelo hedonista inicial. Mas a carga festiva surge ligeiramente mais contida em "Omnion", disco nascido de um período especialmente atormentado para o DJ e produtor nova-iorquino, no qual o sucesso conseguido com os álbuns anteriores o atirou para um reencontro com o álcool e as drogas que foi do flirt à dependência, processo ampliado por relacionamentos encarados hoje como tóxicos.

Não admira, por isso, que o novo registo dos HERCULES & LOVE AFFAIR seja mais melancólico e também mais directo do que os antecessores na abordagem à depressão, à solidão e à diferença, por muito que "The Feast of the Broken Heart" (2014) também já tivesse feito um desvio assinalável nesse sentido, sobretudo ao reforçar o abraço à comunidade LGBT (ao qual "Omnion" dá continuidade, por exemplo, em "Are You Still Certain", tema que convida a banda libanesa Mashrou' Leila, talvez a maior porta-voz gay da música muçulmana nos últimos anos).

 

Omnion

 

Foi, de resto, com uma faceta mais frágil que arrancou o concerto da banda no Lux, precisamente com a faixa-título do novo disco. Se no álbum o tema é defendido por Sharon Van Etten, ao vivo surgiu na voz mais possante de Rouge Mary, que tornou a introspecção do original num momento de afirmação reforçado ao longo da noite.

Além da cantora transgénero, de figura imponente, quase diva disco - ou talvez "madrasta pérfida", como brincou Butler a certa altura? -, a formação actual do grupo completa-se com o mais discreto Gustaph, embora o espectáculo ainda tenha contado com um baterista em palco.

Confissões numa pista de dança

Como já tinham mostrado em actuações anteriores por cá - incluindo uma também este ano, em março, no Lisboa Dance Festival -, os dois vocalistas foram presenças suficientemente galvanizantes, à medida da música quase sempre assente numa mistura de house e disco em torno do formato canção. E o público aderiu, mesmo que a libertação dos corpos tenha sido mais limitada do que as dos movimentos, captados com cores garridas, do ecrã ao fundo do palco, tendo em conta que a sala estava esgotada - e que os cigarros de alguns dos presentes também pareciam querer dançar perigosamente perto dos espectadores à sua volta.

Ao longo de quase uma hora e meia, o alinhamento começou por insistir nos temas do novo disco antes de ir revisitando os anteriores, mas apesar dos inéditos a sensação foi mais de familiaridade do que de surpresa, pelo menos para quem já tenha estado noutros concertos dos HERCULES & LOVE AFFAIR. E face a muitas dessas ocasiões, boa parte do regresso ao Lux até foi inesperadamente morno, em especial numa primeira metade que demorou a reencontrar o fulgor que se dá por garantido numa actuação do grupo.

 

Hercules & Love Affair

 

Trunfos fortes como "My House" e "You Belong", a meio, lá injectaram novo fôlego a uma sequência apenas escorreita como a de "My Curse and Cure", "Wildchild" e "Through Your Atmosphere", contando até com uma maior interacção entre a banda e o público que também ajudou "5.43 to Freedom". "Sejam vocês mesmos com quem quer que vocês sejam vocês mesmos", encorajou Butler, aludindo às questões de identidade e liberdade da canção. O apelo teria continuidade mais para o final do concerto, já no encore, quando Rouge Mary deu voz ao grito optimista de "Rejoice", provavelmente o maior hino de "Omnion" - e reforçado por curiosos ecos industriais.

Mesmo assim, esta costela humanista nem sempre contrabalançou o lado demasiado mecânico de alguns momentos, com uma gestão de ritmos mais eficaz do que particularmente inspirada e um alinhamento não tão equilibrado como o habitual. Sentiu-se a falta de "Visitor" ou "Hercules Theme", casos de euforia garantida ao vivo, mas felizmente houve espaço para a excelência com o trio "Controller"/"Painted Eyes"/"Blind", embora as suas últimas tenham surgido em versões mais espaciais e sintéticas do que as gravadas, que têm outra exuberância.

Mudanças como essas salientam que as actuações do grupo têm vindo a dar cada vez mais prioridade à house e até ao techno, deixando o disco cada vez mais diluído, o que nem sempre é uma boa troca. A mensagem dos HERCULES & LOVE AFFAIR continua louvável - até inatacável, é certo -, mas musicalmente este regresso pareceu relembrar-nos que o óptimo é inimigo do bom.


3/5

Fotos: Carlos Sousa Vieira. Texto originalmente publicado no SAPO Mag

 

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