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gonn1000

Muitos discos, alguns filmes, séries e livros de vez em quando, concertos quando sobra tempo

Muitos discos, alguns filmes, séries e livros de vez em quando, concertos quando sobra tempo

AS PRINCESAS DA (INDIE) POP

Quem disse que não há girl bands criativas e profícuas? Após apostar na coolness do funk e do hip-hop em "Natural Ingredients", no início da década de 90, e de continuar com o indie pop atmosférico e sedutor de "Fever In Fever Out", o trio nova-iorquino Luscious Jackson voltou a surpreender em 1999 com "Electric Honey".

O facto de terem sido "apadrinhadas" pelos Beastie Boys e participado na banda-sonora de "O Bom Rebelde" (Good Will Hunting), de Gus Van Sant, ao lado de nomes como Elliot Smith ou Dandy Warhols, tornou-as ligeiramente mediáticas, mas não o suficiente para que muitos tenham reparado na dissolução do projecto.

"Electric Honey" é, no entanto, um digno álbum de despedida, evidenciado o eclectismo que a banda demonstrou desde o início. Praticando um rock alternativo não muito distante das Breeders ou Veruca Salt, as Luscious Jackson destacaram-se destas pelo apelo pop das suas composições, com sonoridades que, apesar de acessíveis, continham também consideráveis doses de inventividade e experimentalismo. "Electric Honey" atesta bem esta vertente do grupo, proporcionando um melting pot festivo e contagiante que evita a formatação de uma pop menos exigente.

"Nervous Breakthrough" e "Ladyfingers", os temas de abertura, são dois exemplos de energia e vibração irresistível, que certamente seriam singles de rotação privilegiada nas rádios se estas ainda se preocupassem em divulgar nova música (há, no entanto, raras excepções que sempre promoveram a banda). O intrigante breakbeat de "Christine" origina atmosferas mais soturnas, que se mantêm na pop extraterrestre de "Alien Lover". Mais calorosos, os ambientes de "Summer Daze" destilam a sensualidade e subtileza que grupos como os Texas gostariam de ter, e caso alguém ainda duvide que este é um respeitável party album, as Luscious Jackson convidam Debbie Harry, dos Blondie, para "Fantastic Fabulous".

A combinação das vozes de Jill Cunniff e Gabby Glaser permite uma eficaz alternância entre tons mais doces e traços de maior aspereza, e a oferta sonora consegue ser versátil e abrangente - funk, pop, r&b, electrónica, rock alternativo- sem perder a coesão. Há alguns momentos com quantidades de açúcar um pouco acima do recomendável ("Friends" e "Beloved"), e por vezes é melhor não pensar muito acerca da relevância das letras, mas estes são pontuais episódios que não retiram o hipnotismo de temas como "Gypsy" ou a carga encantatória e absorvente de "Fly" (uma das melhores canções do disco, cuja apaziguada sonoridade western/mariachi não destoaria na banda-sonora de um filme de Quentin Tarantino ou num álbum dos Calexico).

Melódico, lúdico, dançável e com uma boa-disposição contagiante (mas não estupidificante), "Electric Honey" não chega a ser um álbum essencial ou particularmente inovador - não há aqui nada de revolucionário, apenas (indie) pop bem confeccionada - mas é um dos discos mais saborosos para afastar a depressão e o mau-humor. Faz jus ao título, portanto.

E O VEREDICTO É: 3,5/5 - BOM

A ARTE E A VIDA

Antes de protagonizar o muito elogiado "Mar Adentro" (The Sea Inside), de Alejandro Amenábar, Javier Bardem assinalou uma das suas interpretações mais emblemáticas em "Antes que Anoiteça" (Before Night Falls), biopic do escritor cubano Reinaldo Arenas segundo a visão de Julian Schnabel (realizador-pintor que assinou também "Basquiat", outra biografia sobre um artista controverso).


Contrariamente a múltiplos retratos edificantes que glorificam, de forma excessiva, a vida do biografado, Schnabel evita esses aparatos melodramáticos e aposta em tons mais realistas, não caracterizando Reinaldo Arenas como um mártir ou uma figura larger-than-life. Paralelamente, o cineasta contorna a previsibilidade e esquematismo de diversas biografias que não fazem mais do que ordenar cronologicamente acontecimentos-chave da vida do biografado, apostando antes numa narrativa não linear que permite uma maior aproximação ao âmago do protagonista.


"Antes que Anoiteça" proporciona um interessante olhar sobre o percurso de Arenas, figura perseguida e ameaçada pelo regime de Fidel Castro entre as décadas 50-70, situação que o forçou a emigrar para os Estados Unidos, onde acabou por morrer vítima de Sida.


Julian Schnabel consegue apresentar eficazmente os tormentos que assolavam o protagonista, cuja vida foi marcada por torturas e punições recorrentes enquanto se encontrava dentro das fronteiras do sistema cubano.

Os motivos desta perseguição eram, por um lado, a escrita subversiva e revolucionária de Arenas, denunciadora das debilidades do regime de Fidel Castro, e também a sua orientação sexual (o escritor era homossexual, factor que o tornava num elemento ainda mais entrópico e desestabilizador).

Schnabel oferece um absorvente estudo de personagem, mergulhando nas convulsões e inquietações do protagonista e na sua vida inconstante e de rumo imprevisível.

Javier Bardem encarna Arenas de forma brilhante e invulgarmente credível, numa interpretação que esmaga todas as outras (mesmo num elenco que inclui fugazes participações de Johnny Depp e Sean Penn).

Bardem gera momentos de fascinante tensão dramática, congregando as doses de pathos e a vertente marginal que a personagem requer.

De resto, o cuidado com a apresentação física da personagem é notável, expondo as múltiplas experiências conturbadas que a marcaram.

As distinções da National Society of Film Critics, dos Independent Spirit Awards e da National Board of Review, que classificaram a prestação do actor como a melhor de 2000, foram mais do que justas e merecidas.


O one-man show de Bardem faz, contudo, com que as restantes presenças do elenco assumam pouca relevância e não suscitem grande curiosidade, tornando o protagonista na única personagem tridimensional e bem trabalhada.

Tendo em conta que se trata de uma biografia, este aspecto é compreensível, até porque o actor é sempre entusiasmante, mas ainda assim lamenta-se que não se encontrem aqui mais figuras memoráveis.


A narrativa do filme sofre também de alguma debilidade, nem sempre exibindo solidez e coesão, o que faz com que "Antes que Anoiteça" proporcione duas horas de vibração e intensidade irregulares.

Schnabel compensa o desequilíbrio narrativo com um sóbrio trabalho de realização, que por vezes origina inspirados planos e imagens de assinalável beleza. O rigor estético é complementado pela apelativa fotografia e, sobretudo, pela muito apropriada banda-sonora original de Carter Burwell (e ocasionais contribuições de Lou Reed e Laurie Anderson).


Cru e realista sem deixar de ser emotivo, "Antes que Anoiteça" supera algumas das suas fragilidades devido ao óbvio empenho do realizador e do actor, que oferecem uma experiência cinematográfica honesta, sentida e credível.

Um bom drama e uma interessante perspectiva sobre a arte e a vida.

E O VEREDICTO É: 3/5 - BOM

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