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gonn1000

Muitos discos, alguns filmes, séries e livros de vez em quando, concertos quando sobra tempo

Muitos discos, alguns filmes, séries e livros de vez em quando, concertos quando sobra tempo

O TALENTOSO MR. MINGHELLA

Realizador que se distinguiu, sobretudo, por "O Paciente Inglês", que apesar de interessante é dos filmes mais sobrevalorizados da década de 90, o britânico Anthony Minghella investiu, nos dois títulos seguintes - "O Talentoso Mr. Ripley" e "Cold Mountain" -, nos mesmos traços que o levaram à fama.
Mantendo um estilo elegante e polido, com um requinte técnico que por vezes, de tão ambicioso (ou mesmo pomposo), caía no academismo, regressa agora com uma obra mais discreta, ainda que a sofisticação formal continue presente.

Em "Assalto e Intromissão" (Breaking and Entering) o cineasta afasta-se dos domínios do filme de época (tanto da vertente thriller como da épica) para se ambientar na Londres actual, em particular em King's Cross, bairro caracterizado por um melting pot étnico que acolhe aqui o recém-inaugurado atelier de um jovem arquitecto e do seu sócio.
Parte de um projecto de reestruturação e requalificação da zona, esta nova infra-estrutura acaba por ser alvo de recorrentes assaltos, o que leva um dos proprietários a investigar a origem dos roubos. Tal atitude traz-lhe, no entanto, mais problemas, uma vez que o envolve em peripécias que colocarão em causa a coesão da sua família, já por si frágil devido às barreiras que se colocam entre si, a sua companheira e a sua enteada.

Drama urbano com ressonâncias sociais, "Assalto e Intromissão" sai-se melhor quando se agarra às contrariedades e inquietações da vida conjugal do que na exploração dos contrastes culturais que influenciam as relações das suas personagens. Isto porque, num filme onde há figuras de origens tão díspares (ocidentais, muçulmanas, bósnias, africanas, da Europa de leste), Minghella nem sempre é capaz de desenvolver um retrato que ultrapasse a caricatura. As intenções, por si só, não bastam, e o realizador secundariza questões que pediam maior complexidade na abordagem.
Felizmente, "Assalto e Intromissão" compensa esta limitação com uma perspectiva adulta e tridimensional sobre os relacionamentos humanos, conseguindo mesmo duas ou três sequências de considerável vibração emocional.
Estas ocorrem sobretudo nas cenas com o casal interpretado por Robin Wright Penn e Jude Law, onde a tensão de um quotidiano dolente implode através de diálogos intensos que denunciam uma escrita apurada. É inevitável não destacar a entrega do duo, em especial a de Penn, com uma presença difícil e absorvente, simultaneamente apaziguada e à beira da combustão, num daqueles desempenhos cuja subtileza se arrisca a tornar-se memorável.

Juliette Binoche, no papel de imigrante muçulmana, exibe a solidez habitual mas a sua personagem torna-se irritante quando insiste na auto-comiseração, arriscando cair nos clichés de uma personagem terceiro-mundista genérica.
Mais conseguida, embora de menor impacto para a narrativa, é a prostituta interpretada por Vera Varmiga, responsável pelos momentos mais hilariantes do filme, outra presença forte de um elenco que inclui ainda Martin Freeman (da série "The Office") ou Ray Winstone.

"Assalto e Intromissão" pede por vezes demasiado ao espectador, como num final que se arrisca a colocar em causa a verosimilhança presente até então, mas o que lhe dá em troca compensa-o, casos da envolvente banda-sonora (uma improvável colaboração de Gabriel Yared com os Underworld), ou da fotografia de Benoit Delhomme, que aliada à segura realização ofecere alguns planos inspirados de uma Londres pouco vista.
A registar, também, a atmosfera apropriadamente lacónica mantida ao longo do filme, assim como a densidade emocional que Minghella consegue impor a uma obra que, mesmo hesitante e com arestas por polir, é uma recomendável adição à filmografia do realizador.

E O VEREDICTO É:
3/5 - BOM

A ILHA

Criada por J. J. Abrams em 2004, "Perdidos" (Lost) tem já lugar entre as séries televisivas mais emblemáticas e entusiasmantes da década, sobrepondo-se a grande parte da concorrência não tanto pela premissa, mas sobretudo pela sua execução, apresentando uma imbatível energia narrativa e um minucioso trabalho de argumento que a tornam em muito mais do que uma mera história de aventuras.

Produzida pela ABC, a série foi uma das responsáveis - juntamente com "Donas de Casa Desesperadas" - pela revitalização do canal televisivo e percebe-se porquê, já que esta história - que segue as experiências dos 48 sobreviventes de um avião que se despenha numa desconhecida ilha do Pacífico - é desenvolvida de forma sempre fresca e intrigante, mantendo um ritmo invejável ao longo dos 24 episódios da primeira temporada.

Seguindo o percurso de 14(!) personagens principais, "Perdidos" começa por causar impacto logo no episódio piloto, quando os sobreviventes do avião reagem ao acidente e tentam lidar com uma situação inédita num cenário incógnito.
Aos poucos, Abrams vai revelando ao espectador os segredos e algumas das memórias mais marcantes das suas personagens, uma vez que todos os episódios seguem não só o dia-a-dia na ilha mas também eventos do passado dos seus novos habitantes. Os flashbacks são assim presença regular na série e peças fundamentais para que as personagens se tornem mais densas e quase sempre ambíguas, sendo interessante verificar as diferenças de comportamento de algumas delas antes e depois do acidente de avião.

Abrams contrói cada capítulo como uma elaborada peça de relojoaria, sabendo dosear suspense, acção, vibração emocional e algum humor, evidenciando um gosto pelo detalhe que se manifesta nas interligações entre os acontecimentos da ilha e as recordações da personagem em destaque. Daí resulta um intrincado puzzle cuja aura enigmática se adensa continuamente, deixando o espectador tão hesitante como os protagonistas em relação ao facto de nunca chegar nenhuma equipa de salvamento das vítimas do desastre e, mais ainda, quanto aos mistérios e singularidades da ilha.

O novo lar dos sobreviventes, à partida paradisíaco, esconde vários perigos que vão sendo expostos ao longo da involuntária estadia, desde uma assustadora e gigantesca criatura até aos estranhos habitantes denominados "Os Outros", aparentemente responsáveis pela morte dos passageiros de outro desastre de avião ocorrido há 16 anos.

Tendo em conta que as personagens se encontram imersas num contexto tão nebuloso e inquietante, a série tornou-se motivo para todo o tipo de especulações e circulam, entre os muitos fãs, propostas quanto ao que está por trás da existência da ilha. A primeira temporada sugere algumas pistas, sobretudo nos episódios finais, mas mesmo depois de inúmeros twists e demais manobras do bem arquitectado argumento, ficam quase todas por esclarecer.

Abrams, que anteriormente já se tinha destacado por outras séries televisivas, ("Felicity", "Alias"), e que posteriormente efectuou a passagem para o grande ecrã com "Missão: Impossível 3", tem em "Perdidos" o seu trabalho mais conseguido, um entretenimento superior onde uma componente lúdica se interliga com uma tensão por vezes sufocante.

O elenco, composto por caras até então pouco conhecidas, surpreende pela coesão, pois nenhum actor oferece um desempenho que comprometa os bons resultados, e o desenvolvimento das muitas personagens é igualmente digno de elogios.

Desde o médico Jack (Matthew Fox), que as circunstâncias obrigam a que se torne no mentor do grupo; o seu contraponto Sawyer (Josh Holloway), individualista e sarcástico; a dúbia mas prestável Kate (Evangeline Lilly), que se coloca entre ambos como provável interesse amoroso; o ex-soldado iraquiano Sayid (Naveen Andrews), que se aproxima da superficial Shannon (Maggie Grace) para descontentamento do irmão desta, Boone (Ian Somerhalder); o ingénuo e atormentado Charlie (Dominic Monaghan), músico que tenta deixar a dependência da heroína enquanto auxilia Claire (Emilie de Ravin), grávida de vários meses; passando por Jin (Daniel Dae Kim) e Sun (Yunjin Kim), um casal coreano cuja relação ameaça ruir; pelo ex-paralítico e obstinado Locke (Terry O'Quinn); por Hurley (Jorge Garcia), obeso e obcecado por um enigma que envolve números; e por Michael (Harold Perrineau Jr.) e Walt (Malcolm David Kelley), pai e filho que tentam aprender a viver juntos; a série tece um complexo novelo que seduz pela forma como interliga todos estes temperamentos e perspectivas, muitas vezes antagónicos.

Redefinindo o género de acção e aventura para o século XXI, a primeira temporada de "Perdidos" cativa pela sofisticação e engenho transpirados em todos os episódios, gerando várias horas que compõem alguma da mais aborvente televisão que se fez nos últimos tempos, dado que é praticamente irresistível passar de imediato para outro capítulo depois de se mergulhar nesta saga brilhante, a ver e rever sem reservas.

E O VEREDICTO É:
4/5 - MUITO BOM


Promo de "Perdidos" realizado por David LaChapelle para o Channel 4

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