Festa quase imparável com a rainha da noite
A passagem recente por Portugal, durante o festival Alive!08, este Verão, não impediu que Róisín Murphy ainda tenha levado muitos a passar a noite de ontem no Coliseu de Lisboa. Compreende-se, ou não tivesse sido essa actuação uma das mais contagiantes do festival de Oeiras, e o ambiente festivo teve direito a continuação mais longa na sala de espectáculos lisboeta.
Sem grandes diferenças, tanto de alinhamento como na vertente cénica, face a essa visita anterior, o concerto apostou numa diversificada ementa que alternou episódios de desvario electrónico com outros mais orgânicos, num saudável cruzamento de atmosferas que não receia combinar géneros diversos.
House, funk, techno, soul, R&B ou electro foram alguns dos ingredientes, e se essa algo arrojada mistura gerou uma actuação onde o apelo nem sempre foi elevado, no geral o balanço voltou a destacar a cantora como um dos nomes confiáveis da pop actual, pelo menos em palco.
O relativo desequilíbrio já vem dos seus discos de originais, o algo hermético "Ruby Blue" (2005) e o mais acessível "Overpowered" (2007), e embora a actuação tenha incluido as melhores canções de ambos não conseguiu evitar pontuais momentos mornos.
Nada de grave, contudo, e compreende-se que ao longo de duas horas seja difícil manter a envolvência de singles como "Overpowered" e sobretudo "You Know Me Better", que abriram a noite em alta com um uma energia desenfrada e tiveram, felizmente, paralelo em muitas outras ocasiões.
Já "Movie Star" foi mesmo insuperável, surgindo a meio do concerto, após uma sucessão de canções intimistas, com uma extraordinária energia que obrigou a maioria a regressar aos passos de dança. Numa versão quase irreconhecível face à que é apresentada em disco, deixou de lado o refrão orelhudo e optou por ondulações electrónicas bem mais intrigantes, que se conjugaram na perfeição com a postura e bizarra indumentária de Murphy escolhidas para o tema, num hipnótico momento de pop intergaláctica.
A ajudar ao impressionante efeito estratosférico, as explosões de cor do grande ecrã no fundo do palco tornaram este num memorável episódio onde o Coliseu se transformou numa gigantesca cave rave.
Depois de um cenário de antologia como este tudo o que se seguisse estaria condenado a defrontar-se com uma fasquia altíssima, e mesmo que não tenham chegado lá canções como "Dear Miami" (também numa óptima nova versão, mais extensa), a sempre arrepiante "Primitive" ou uma envolvente cover de "Slave to Love", de Bryan Ferry, foram trunfos fortes.
Mais inesperados, os obrigatórios momentos de revistação ao catálogo dos Moloko não apostaram em singles mediáticos como "Forever More", "Sing It Back" ou "The Time Is Now", já que o alinhamento arriscou ao revisitar temas mais obscuros do já longínquo "Do You Like My Tight Sweater?" (1995), o disco de estreia do grupo. Foi o caso de "Day For Night" ou "I Can't Help Myself", e mesmo as passagem por álbuns seguintes incidiu em escolhas nada óbvias como "Dr. Zee" ou "I Want You".
Além de se alicerçar em música recomendável, o concerto permitiu confirmar Murphy enquanto hábil entertainer, mudando de personagem mediante a canção - por vezes de forma abrupta -, numa constante troca de guarda-roupa que tanto deu lugar a casacos de cabelal e óculos de sol, sugestivas luvas longas cor-de-rosa, fatos mais extravagantes ou mesmo uma camisa de forças, numa versátil sucessão cromática.
A complementar esta dinâmica, as imagens do ecrã de fundo foram imaginativas e apropriadas q.b., desde a chuva de caveiras na tempestuosa "Pretty Bridges" à bola de espelhos que reforçou o embalo disco de "Let Me Know".
Mas não se pense que a componente teatral foi apenas fogo de vista para disfarçar a ausência de outras capacidades, já que a cantora mostrou ser dona de uma voz de excepção que sobrevive muito bem sem efeitos de estúdio, devidamente evidenciada nos temas mais tranquilos.
Igualmente merecedora de elogios, a banda que a acompanhou ajudou à consistência geral, tanto os vários músicos como as duas bailarinas/cantoras que aderiram sem reservas às provocações de Murphy.
No final, a cantora despediu-se do público com o último dos muitos agradecimentos e prometeu voltar, acendendo mais um rastilho para a euforia manifestada em quantidades generosas ao longo de duas horas que não demoraram a passar.
Não é difícil de prever, por isso, que Portugal deva estar no calendário da cantora na digressão centrada no seu terceiro disco, a editar em breve. A garantia de festa também é quase certa, mas antes disso pode ser vista mais uma actuação em Portugal, esta noite na Casa da Música, no Porto.
Fotos: Vera Moutinho
Róisín Murphy - "Overpowered"