Quem matou Kathryn Bigelow?
"00:30 Hora Negra" inquieta, mas pelos piores motivos. Não por se atirar de cabeça a feridas que ainda estão por cicatrizar, como o 11 de Setembro e, em especial, a caça a Bin Laden, mas por ser obra de uma Kathryn Bigelow praticamente irreconhecível, a exibir os piores sintomas de cineasta "séria", quase consensual, em que se tornou depois de "Estado de Guerra" (2008).
Se nesse filme ainda dava razão a quem a apontava como uma das melhores realizadoras de acção actuais, aqui a norte-americana opta por um retrato desmaiado, insosso, em que a objectividade e o rigor surgem como desculpa para a sisudez e a indiferença. Tecnicamente está, como sempre, tudo no sítio, e não há grande coisa a apontar à realização, fotografia ou direcção de actores. O problema é que, bem espremido, "00:30 Hora Negra" também não oferece mais nada além dessa competência industrial, tristemente esbanjada numa narrativa que lembra séries de investigação criminal para acompanhar insónias nas madrugadas televisivas.
Não se assumindo como documentário, mas tendo uma aridez ficcional que nunca mergulha nas personagens, o filme não demora muito a cair numa rotina em que qualquer resquício de acção, ou mesmo de suspense, é trocado por diálogos explicativos, geralmente sobre pormenores estratégicos, debitados por bons actores transformados em cabeças falantes.
Admita-se que, a certa altura, Bigelow tenta dar algum "pathos" à protagonista, agente da CIA interpretada por uma Jessica Chastain que passa ao lado de uma figura intrigante e absorvente, apesar de manter um olhar pesaroso em quase todas as cenas (voltando às séries televisivas de investigação, a protagonista de "The Killing", outra mulher num mundo de homens - curiosamente, também ruiva e obstinada -, é uma personagem comparável mas bem mais complexa e verosímil). O pior é que o suposto reforço de tensão dramática chega de forma inacreditavelmente previsível e amadora, despachando uma personagem secundária que só lá estava para servir o esquematismo do argumento (se o investimento emocional da protagonista já era dúbio, ou pelo menos forçado, o do espectador andará perto do nulo).
Poderá dizer-se que "00:30 Hora Negra" é suficientemente perspicaz e inteligente para não cair num retrato pró ou anti-americano, equilíbrio que consegue com alguma distinção, embora isso não salve duas horas e meia que se arrastam entre demasiada palha narrativa e um olhar quase 100% cerebral (que derrapa nos acessos emocionais), anódino e muito pouco absorvente - "Argo", por exemplo, sai-se muito melhor ao partir da realidade para a ficção sem comprometer o equilíbrio ideológico e moral. Mesmo as tão faladas (e polémicas) cenas de tortura, ao início, pouco acrescentam ao filme quando sequências semelhantes já passaram tanto pelo cinema (no também recente "O Dia do Juízo Final", de Gregor Jordan, que até era mais extremo) como pela televisão (na série "24").
É verdade que, na recta final, "00:30 Hora Negra" devolve, finalmente, Bigelow aos ambientes de acção através dos quais se notabilizou ao longo dos anos, numa meia hora que tenta compensar a falta de nervo do resto do filme. Mas não só chega tarde como falha, novamente, na construção das personagens - no caso, soldados norte-americanos no terreno -, o que só reforça a sensação de que um documentário teria sido mais produtivo. De preferência, um documentário sobre Bin Laden, até porque o lado muçulmano da história não tem direito a grande retrato e mostra outro potencial. Claro que, ainda assim, o melhor era mesmo voltar a ver Bigelow longe deste estilo anónimo, para não dizer tépido, num filme que não tivesse medo de funcionar como entretenimento enquanto falasse de coisas sérias. "00:30 Hora Negra" não resulta visto por qualquer desses ângulos e só deixa mais saudades dos tempos de "Estranhos Prazeres" (1995), ainda a obra-prima de uma realizadora que, a nível criativo, vive agora uma hora negra - por muito que a luz dos holofotes brilhe mais do que nunca.