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gonn1000

Muitos discos, alguns filmes, séries e livros de vez em quando, concertos quando sobra tempo

Muitos discos, alguns filmes, séries e livros de vez em quando, concertos quando sobra tempo

Amores eternos, escondidos, precoces ou perdidos

Vampiros, imigrantes, professores e alunos contam-se entre os protagonistas de algumas das curtas e longas-metragens de ficção ou documentários do QUEER LISBOA 19. Enquanto não arranca a primeira edição do festival no Porto (de 7 a 10 de Outubro), fica o balanço de meia dúzia de filmes que passaram pelo São Jorge há uns dias, para juntar aos de boas surpresas como "Oriented" ou "7 Kinds of Wrath":

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"AMOR ETERNO": O vencedor da competição para melhor longa-metragem é um exercício de estilo tão desbragado como cerebral, a levar ao extremo a ideia de amor não correspondido na relação entre um aluno e um professor do secundário. Depois de "Animals" (2012), Marçal Forés reafirma-se como um esteta com ideias, capaz de desenhar atmosferas que cruzam terror série B, drama coming of age e um erotismo macabro, tudo apimentado com humor negro e uma banda sonora electrónica escolhida a dedo (não por acaso, o espanhol vem da escola dos videoclips). No seu melhor, esta muito curiosa variação sobre a mitologia dos vampiros cruzada com heranças de "O Desconhecido do Lago" (trocando a praia por uma mata enquanto local de cruising) oferece sequências impecáveis (e implacáveis) como uma longa cena de sexo num carro, em que os protagonistas esquecem as leis para consumarem o desejo. Menos conseguido é o facto de o filme dizer logo ao início ao que vem e sugerir, de forma demasiado óbvia, como vai terminar. Perde-se boa parte do efeito surpresa, fica-se com uma obra ainda assim escorreita, divertida e perturbante.

3/5

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"09:55-11:05, INGRID EKMAN, BERGSGATAN 4B": Um apartamento, duas actrizes, duas realizadoras atentas aos gestos e olhares. Os 15 minutos desta proposta sueca não precisam de muito mais para deixar uma das melhores revelações do Queer Lisboa 19, naquele que é também um manifesto feminista - não por ter qualquer marca militante, mas por resultar de quatro mulheres que sabem muito bem o que estão a fazer. O que no papel se resume ao retrato de uma idosa com cancro cuja única visita regular é uma jovem assistente domiciliar consegue ganhar, em poucos minutos, um peso emocional que muitas longas-metragens nunca vislumbram (e houve algumas dessas na programação). Com contenção e tacto, Cristine Berglund e Sophie Vukovic assinam um belo filme sobre a passagem do tempo e a solidão, justo e rigoroso, que diz muito com pouco e tira o maior partido de duas óptimas actrizes. Não será a proposta mais queer do festival, mas é das mais maduras e (dolorosamente) serenas.

4/5

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"A ESCONDIDAS": Por um lado, esta segunda longa-metragem do espanhol Mikel Rueda é só mais um drama boy meets boy, com uma estrutura que não se afasta muito da rotina de uma comédia romântica (do encontro ao envolvimento, da separação à reconciliação). Talvez por ter noção disso, o realizador opta por uma narrativa não linear, mas no final o filme nem ganha muito ao baralhar as peças, até porque a história não se torna mais interessante por isso e tem as suas limitações. Falta química a este romance entre dois adolescentes, um espanhol e um imigrante ilegal marroquino, e o facto de o primeiro actor ser bem mais credível do que o segundo não ajuda. O mais singular desta história até é o que está fora dessa relação, como as cenas da pressão de grupo para que um dos miúdos conquiste uma amiga e, sobretudo, a forma como essa personagem se vai afastando do seu melhor amigo, captada com uma sensibilidade que realça o lado forçado do retrato amoroso (tornado mais gritante com montagens adocicadas pela banda sonora indie). É pena que essa sensibilidade seja mais a excepção do que a regra, mas ainda é suficiente para um filme simpático.

2/5

queerlisboa2015_limbo2

"LIMBO": Chegava como uma das obras mais promissoras das longas-metragens em competição (com direito a algumas distinções), acabou por ser revelar uma das mais frustrantes (ao lado da igualmente arrastada "La Visita", do chileno Mauricio López Fernández). Anna Sofie Hartmann tenta juntar um drama realista centrado numa professora e numa adolescente com um olhar documental sobre a pequena localidade dinamarquesa em que a acção decorre, em especial na actividade de uma fábrica de açúcar, mas pelo meio parece perder-se sem saber que história contar. Ou talvez nem lhe interesse muito contá-la, pela forma como abandona as personagens de repente e deita abaixo qualquer investimento emocional do espectador. Os incontáveis travellings do cenário local, mais do que funcionar como separadores, quase se tornam protagonistas de um filme árido que, mesmo assim, tem um título coerente: não aproveita nem os actores nem as atmosferas envolventes de alguns episódios, deita tudo a perder num final entre o risível e o irritante. E não há virtuosismo formal que preencha esse vazio...

1/5

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"MISFITS": Às vezes, este documentário chega a lembrar "Totally F***ed Up", um dos marcos do novo cinema queer, embora numa versão mais limada e bem-comportada. Se o filme de Gregg Araki seguia um grupo de seis adolescentes homossexuais em inícios dos anos 90, a proposta de Jannik Splidsboel centra-se em três do único centro comunitário LGBT de Tulsa, localidade particularmente conservadora do Oklahoma. E nem começa de forma muito auspiciosa, com um registo a rondar a vitimização que vai sendo, felizmente, trocado por um relato capaz de fintar alguns clichés: os da lésbica de postura masculina ou do gay efeminado, por exemplo, que caem por terra quando o realizador dinamarquês capta o que há de único nos retratados, tanto nas suas virtudes como nas fragilidades. Quando o consegue deixa alguns momentos com uma força assinalável, caso de uma conversa entre dois irmãos em que o mais velho, hetero, deixou para trás a homofobia mas confessa-se agora marginalizado pelo mais novo, gay, ainda que de forma inconsciente. Ou as cenas em que o sarcasmo da protagonista feminina, insistente e estratégico, é desarmado pela sinceridade "muito melosa" da sua namorada - e com isso capaz de trazer à tona o melhor nela. Por episódios ao nível desses, "Misfits" supera a relativa modéstia cinematográfica (e opções como ter a música a sublinhar o que já era evidente) em três histórias de vida que se acompanham sempre com interesse e empatia.

3/5

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"SAN CRISTÓBAL": Premiada com o Teddy Award no Festival de Berlim deste ano, esta primeira curta-metragem do chileno Omar Zúñiga Hidalgo já vai a caminho da longa. A adaptação para outro formato é compreensível, já que a história de dois rapazes de uma pequena localidade do Chile (um lá residente, outro de passagem para visitar a irmã antes de emigrar) talvez saia a ganhar caso vá além dos 30 minutos desta versão inicial. Não que esteja mal assim: se é verdade que não há aqui nada de novo ou sequer muito arrojado, a vertente realista é bem defendida tanto pela realização como pela dupla de protagonistas, com uma segurança e espontaneidade invulgares numa estreia já com algum fôlego (uma duração longa q.b. para uma curta). Nem a questão da homofobia em meios pequenos, já demasiado vista, belisca a sobriedade de um drama cuja conjugação de candura e melancolia se despede mais cedo do que o desejável. A primeira impressão é boa, venham agora outros voos...

3,5/5

Viram-se gregos para amar

Se as notícias que têm chegado da Grécia estão longe de ser as melhores, dificilmente poderá dizer-se que o seu cinema está em crise (criativa, pelo menos). "7 KINDS OF WRATH" é dos exemplos mais recentes disso mesmo.

 

7_Kinds_of_Wrath

 

Filmes como "Canino" ou "Attenberg", entre outros, têm conquistado públicos fora de portas e somado aplausos nos últimos anos. Ao contrário desses, "Boy Eating the Bird's Food" ou "Xenia" não tiveram direito a estreia comercial por cá, mas ganharam espaço na programação do Queer Lisboa nas edições mais recentes.

Este ano, o Festival Internacional de Cinema Queer apostou, e bem, em "7 KINDS OF WRATH", uma das longas-metragens mais aconselháveis em competição. Se a maioria das obras da cinematografia grega que têm dado que falar é da autoria de novos cineastas, este drama tem a assinatura de um veterano, Christos Voupouras, que se estreou na realização nos anos 80 depois de uma experiência considerável como montador. E essa escola nota-se num quinto filme que, apesar de não dispensar a irreverência e até um gosto pelo absurdo reconhecíveis noutros títulos conterrâneos, traz um olhar mais adulto e vivido, tanto pelas questões levantadas como pela forma como as aborda.

A relação entre um arqueólogo grego na casa dos quarenta e um jovem imigrante egípcio serve de centro narrativo e emocional, e pode funcionar como sinopse mais óbvia, mas está longe de dominar uma obra com outros horizontes, entre uma reflexão sobre a possibilidade do amor, o preço do envelhecimento ou a proximidade da morte e as tensões culturais, sociais ou religiosas em jogo na nova Europa.

 

7_Kinds_of_Wrath_2

 

Vale a pena salientar que Voupouras não escolhe o caminho mais fácil. O olhar que lança sobre os muçulmanos está a um passo de suscitar acusações de islamofobia, mas admita-se que os ocidentais não ficam muito melhor no retrato e que Husam, o jovem árabe, é mais uma personagem de corpo inteiro do que o arquétipo de um povo (o desempenho de Nikos Gelia, que já tinha sido um dos protagonistas de "Xenia", ajuda muito, ao traduzir bem um misto de obstinação e vulnerabilidade).

Entre uma faceta realista e sequências menos terra-a-terra, com acessos nonsense e simbologia religiosa (ou outras alusões nem sempre facilmente descodificáveis), "7 KINDS OF WRATH" não se agarra a nenhum cânone a não ser ao de uma lógica interna muito própria, que acaba por ir descobrindo o seu caminho - mesmo que por vezes pareça perder-se em tramas ou figuras secundárias, como a de um polícia ou a de um jovem músico que levam a irrisão e alucinação ao limite.

Estas viragens, às vezes repentinas, nem sempre jogam a seu favor, mas também geram boa parte do fascínio deste casamento intrigante de comédia e tragédia (na boa tradição grega, lá está), com alguns momentos de humor cáustico a impedir que a crise de meia-idade do arqueólogo (um meditativo Maximos Moumouris, com pathos à medida da personagem) se deixe levar pelo miserabilismo. O que não quer dizer que seja mais fácil lidar com o desespero surdo do protagonista, eco de uma visão do mundo assombrada pela solidão e falhas de comunicação devidamente cimentada por uma (belíssima) fotografia a preto e branco e enquadramentos de quem tem o olhar treinado. O resultado poderá despertar mais a admiração distanciada do que a rendição incondicional, mas dificilmente alguém sairá ileso de um filme que recusa fechar-se de forma tão cortante.  

 

 

 

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