"I'm leaving the table, I'm out of the game". Quando passa quase um ano da morte de LEONARD COHEN (que se completa a 7 de Novembro), é ainda mais difícil ouvir o seu último álbum, editado poucos dias antes da despedida, sem encontrar nele um prenúncio do que se seguiria.
É o caso de canções como "LEAVING THE TABLE", um dos momentos altos de "You Want It Darker" mas também a prova (mais uma) de que o canadiano sabia ser o último a rir. O recuo de quem está prestes a sair de jogo está longe de um tom pesaroso e opta por uma ironia que parte da letra, mantém-se na interpretação e continua a comandar o videoclip, revelado há poucos dias nos prémios Polaris - cujos responsáveis tiveram a iniciativa de acompanhar o tema com imagens para um tributo ao cantautor.
Realizado por Christopher Mills, o resultado é uma animação inspirada por pinturas e colagens que encontra a voz de "I'm Your Man" a esvoaçar pelos céus de Montreal enquanto recorda fases do seu percurso - e nem o ritmo mais frenético do que o da música impede que se vá conjugando bem com esta. Cohen provavelmente gostaria:
Depois dos jogos da fome, um jogo de massacre? Não parece haver grande programa em "MÃE!" além da humilhação (calculista e recorrente) da personagem de Jennifer Lawrence, por muito que Darren Aronofsky tente abrir o filme a todo o tipo de leituras.
O início até nem é desinteressante. Concentrando a acção numa casa isolada, habitada por um casal, "MÃE!" arranca com uma mistura curiosa de drama conjugal árido, doses moderadas de humor escarninho e sugestões de terror psicológico, a deixar no ar que esse olhar contido sobre a esfera íntima não deverá manter-se por muito tempo.
Ao arrancar com a crónica da relação entre um escritor reputado em bloqueio criativo e uma mulher exclusivamente dedicada ao marido e ao lar, o novo filme de Darren Aronofsky vai colocando em jogo um olhar intrigante q.b. sobre as dinâmicas de um relacionamento, e não demora muito a apontar quem domina e quem se deixa subjugar (ou não se consegue impor). Essa ideia sai reforçada à medida que a casa vai acolhendo cada vez mais visitas, todas inesperadas, que colocam em causa a (aparente) calmaria inicial.
A personagem de Jennifer Lawrence, na qual a câmara se concentra, vai guiando o espectador enquanto se torna alvo crescente de pequenas humilhações, mas o que parte de uma revisão especialmente assombrada da Gata Borralheira acaba vítima de um efeito bola de neve sem travão à vista, que desaproveita o esforço da actriz. E o desempenho não chega a ir muito além do esforço porque o argumento não deixa que Lawrence componha uma personagem de corpo inteiro, embora sempre lhe ofereça mais do que ao resto do elenco.
Javier Bardem, cujo percurso recente tem alternado entre o latino de serviço e caricaturas excêntricas, deixa uma interpretação a milhas do magnetismo de outros tempos (qual foi o seu último grande papel, mesmo?). De Ed Harris, então, dificilmente alguém se lembrará no final do filme. E Michelle Pfeiffer, embora num convincente modo vamp, parece ter ido passear às gravações enquanto bebia uma limonada e atirava umas farpas a Lawrence.
Aos poucos, vai ficando claro que "MÃE!" se interessa mais por figuras simbólicas do que propriamente por pessoas, opção que compromete o investimento emocional ainda possível durante a primeira metade mas difícil de manter na segunda. Quando Lawrence se sujeita a marioneta acumuladora de flagelos (não bastou o DiCaprio de "The Revenant: O Renascido", no ano passado?), a sucessão de episódios caóticos e prontos a inquietar e indignar sujeita-se a ter reacções entre o bocejo e o encolher de ombros.
É verdade que este tipo de abordagem não é inédito na filmografia de Aronofsky. Só que se "A Vida Não é um Sonho" até podia ser acusado de montra de miserabilismo pornográfico, também tinha uma energia formal rara associada ao desempenho e personagem inesquecíveis de Ellen Burstyn. O romantismo maior do que a vida de "O Último Capítulo" podia ser datado e ingénuo, mas Hugh Jackman e Rachel Weisz atiravam-se de cabeça a essa ambição - complementada por uma vertente plástica arriscada e pouco vista. E "Cisne Negro", outro retrato sinuoso de uma mulher no abismo, mantinha um equilíbrio e subtileza difíceis de gerir, no fio da navalha, dos quais "MÃE!" nunca chega a aproximar-se - se aí Aronofsky sussurrava, agora grita.
Não admira que o novo filme "arrojado", "provocador" e "polémico" do norte-americano esteja a alimentar tanta discussão. Parece ter sido talhado para isso, abrindo a porta a todo o tipo de projecções e alegorias quando impõe a tentativa de ensaio civilizacional ao drama das personagens - das óbvias referências bíblicas a possíveis analogias com temáticas que vão do fascínio pela fama a alertas ambientais, passando pela crise dos refugiados ou (porque não?) pela América de Trump.
Só é pena que esse debate parta de uma obra cuja lógica de vale tudo a atira para a lista de filmes que se auto-destroem depois do intervalo (a lembrar outras desilusões recentes como "Foge", de Jordan Pele, ou "Arranha-Céus", de Ben Wheatley, curiosamente também com boa parte da acção confinada a um único espaço). E também é frustrante que visualmente o resultado seja igualmente desinspirado, sem o rasgo que ajudou a distinguir a filmografia de Aronofsky (pelo contrário, até tem algum do CGI menos credível de uma grande produção nos últimos tempos). Distinção, de resto, é o que menos há em "MÃE!": de "A Semente do Diabo", de Roman Polanski, a "Dogville", de Lars Von Trier, já vimos o que aqui se diz e mostra feito por outros, e bem melhor. O sacrifício de Jennifer Lawrence foi mesmo em vão...