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gonn1000

Muitos discos, alguns filmes, séries e livros de vez em quando, concertos quando sobra tempo

Muitos discos, alguns filmes, séries e livros de vez em quando, concertos quando sobra tempo

Coração latino

Bebe

 

Ao longo de quatro álbuns, BEBE tem mostrado que está pouco interessada em repetir-se e o próximo passo parece manter essa tendência. Depois de "Cambio de Piel" (2015), cuja moldura sonora era relativamente mais sóbria do que a vertente agreste, quase punk, de "Un Pokito de Rocanrol" (2012), a cantora espanhola continua a subverter as expectativas dos fãs.

 

Alguns admiradores não têm perdoado, aliás, a "ousadia" ou "oportunismo" do novo single, "CORAZÓN", a primeira amostra de uma fase inspirada por audições atentas de muito reggaeton e trap - numa altura em que a pop latina parece estar mais dominante do que nunca.

 

BEBE tem elogiado as experiências híbridas da conterrânea Rosalía e avança que as suas próximas canções nascem da influência de música urbana recente, prometendo uma faceta ritmada e dançável.

 

Bebe 2018

 

O novo tema é mesmo dos mais imediatos do seu percurso, ao saltar de uma vertente acústica (próxima dos discos anteriores) para um compasso percussivo. Mas embora seja um single orelhudo, não deixa de contar com uma voz de timbre e fraseado reconhecível que ainda dispara algumas farpas (neste caso, a um ex-namorado que se atreve a telefonar a meio da noite em busca de consolo).

 

Composta pelo colombiano Bull Nene (Maluma, J. Balvin) e produzida pelo porto-riquenho Tainy (Janet Jackson, Jennifer Lopez, Shakira), "CORAZÓN" dá início a novas colaborações que incluem ainda o espanhol Raúl Rosillo, realizador de um videoclip queer q.b. - com a cantora ao lado de dois bailarinos andróginos em cenários garridos.

 

Uma viragem para ir acompanhando nos próximos meses - com direito a digressão espanhola em Novembro e Dezembro -, e cujo resultado só deverá ser conhecido lá para finais de 2019, data equacionada para um eventual novo álbum. Por agora, roda o single:

 

 

Freud não explica (mas Nietzsche dá um empurrão)

O novo cinema romeno continua a merecer atenção e "ANA, MEU AMOR", de Cãlin Peter Netzer, tem sido um dos casos mais recentes de aplauso internacional - mesmo que a narrativa seja tão irregular como o estado da relação que acompanha. 

 

Ana Meu Amor

 

Cãlin Peter Netzer já se tinha imposto como nome a seguir entre a nova geração de cineastas romenos com "Mãe e Filho" (2013), a sua terceira longa-metragem e a que mais o ajudou a abrir portas até então - entre as distinções contaram-se o Urso de Ouro no Festival de Berlim e a candidatura a Óscar de Melhor Filme Estrangeiro.

 

"ANA, MEU AMOR", a somar mais um prémio em Berlim (Urso de Prata para Melhor Contribuição Artística em 2017, pela montagem), mostra que o realizador continua interessado em seguir relações tóxicas q.b., com doses assinaláveis de manipulação, desviando agora o foco do âmbito maternal para o conjugal. Mas embora mude também o tom (um pouco menos árido e escarninho) e o formato narrativo (aqui não linear, com avanços e recuos temporais), o filme mantém os trunfos e limitações do antecessor ao se infiltrar no quotidiano de um jovem casal ao longo de vários anos.

 

Ana Meu Amor 3

 

Intacta está a atmosfera crua e realista, a cargo de um recurso talvez excessivo da câmara à mão que ainda assim faz justiça ao talento e entrega da dupla protagonista, os óptimos Diana Cavallioti e Mircea Postelnicu. É notável, aliás, como o trabalho de caracterização se conjuga com a espontaneidade dos actores para dar conta do envelhecimento das personagens - com direito a mudanças de cortes de cabelo que noutros casos pareceriam forçados mas aqui resultam credíveis e até determinantes para situar o espectador entre os saltos cronológicos.

 

A moldar a dinâmica da relação, os ataques de ansiedade da protagonista feminina, Ana, são um elemento-chave logo desde a primeira sequência do filme, que encontra o casal nos tempos da universidade numa discussão (e manobra de sedução) a dois sobre leituras de Nietzsche. A conversa, interrompida por um ataque de pânico, dá o mote para uma história de amor vincada pela devoção e depressão, que Netzer desenvolve com regressos a questões filosóficas, mas também religiosas. A psicanálise surgirá também por aqui, sendo especialmente marcante para as cenas recorrentes das sessões de terapia do protagonista masculino, Toma, embora o realizador não reduza este drama a meras relações deterministas de causa-efeito.

 

Ana Meu Amor 2

 

A lembrar a espaços as relações atormentadas de "Meu Rei", de Maïwenn, ou "Blue Valentine - Só Tu e Eu", de Derek Cianfrance, tanto pela narrativa fragmentada como pelo embate contínuo entre solidão e codependência, "ANA, MEU AMOR" pode não trazer novidades de maior mas ainda é uma variação conseguida de um caso "amour fou" devidamente personalizado, até pela intromissão de sinais da realidade romena no percurso do casal - em particular pelos contrastes culturais, sociais e políticos dos dois jovens amantes, tornados mais evidentes nas cenas com as famílias tanto dele como dela.

 

As mais de duas horas de duração, no entanto, levam a que uma mão cheia de cenas fortes surja entre outras tantas menos vitais, a acusar alguma redundância narrativa. E o empenho dos actores (que não se esquivam a dar corpo a dois ou três episódios despudorados) nem sempre chega para que o filme desperte o mesmo nível de interesse, sobretudo quando as muitas elipses acabam por deixar de fora alguns pormenores do desenvolvimento da personagem de Ana - mesmo que essa limitação até possa ser intencional, uma vez que é sobretudo o olhar de Toma a conduzir o espectador. De qualquer forma, tal como em "Mãe e Filho", há por aqui intensidade e inteligência suficiente para que Cãlin Peter Netzer seja um nome a reter e "ANA, MEU AMOR" um filme a espreitar entre tantas estreias dispensáveis.

 

 3/5