O tempo dos ciganos
Foi o último candidato italiano às nomeações de Óscar de Melhor Filme Estrangeiro, tem feito um percurso elogiado em festivais e conta com Martin Scorsese entre os produtores. Olhar ambíguo sobre a xenofobia a partir do dia-a-dia de um adolescente cigano, "A CIAMBRA" é uma das estreias a não deixar passar num Verão cinematográfico pouco estimulante.
Entre as muitas particularidades da segunda longa-metragem de Jonas Carpignano está o facto de regressar a algumas personagens da primeira, "Mediterranea" (2015), sem no entanto poder ser considerada uma sequela. "A CIAMBRA" é antes uma derivação dos espaços e figuras desse filme que seguia a jornada de dois refugiados do Burkina Faso, optando por elevar um dos seus secundários a protagonista enquanto desvia o foco da comunidade africana.
Ambientado em Itália, ponto de chegada da história anterior, infiltra-se nos códigos, tensões e tradições de uma família cigana da Calabria, região do sul do país, a partir das experiências de Pio Amato, um rapaz de 14 anos e o tal secundário repescado de "Mediterranea" - que até já se tinha imposto como protagonista na curta "A Ciambra" (2014). E é um regresso oportuno: interpretado por um actor não profissional - como o são, de resto, os outros elementos da sua família, que encarnam versões ficcionadas deles próprios - , Pio é uma das grandes personagens a passar pelo grande ecrã nos últimos tempos, tanto pela espontaneidade que emana como pela forma justa e envolvente como Carpignano capta o seu quotidiano.
Não é assim tão frequente ver a comunidade cigana no cinema ou na televisão e será ainda mais difícil apresentá-la sem cair em estereótipos, sejam os de diabolizações fáceis ou os de um olhar pasteurizado. E aí "A CIAMBRA" consegue um equilíbrio meritório, sobretudo ao conjugar as vivências da família de Pio com as dos seus vizinhos refugiados ou a máfia italiana local, outra das particularidades de um drama que não se esgota num eventual interesse sociológico.
Esta é, acima de tudo, a história do crescimento de Pio, e se a narrativa acaba por seguir as linhas de outros filmes coming of age, Carpignano doseia-a com um assinalável (e muito vívido) travo documental, vincando um tom onde a rispidez e a crueza convivem com uma candura que nunca cai no melodrama puxa-lágrima - mantendo-se igualmente longe do miserabilismo árido que poderia invadir estes territórios.
Como uma personagem refere a certa altura, esta comunidade cigana lembra a espaços outras famílias italianas. No arranque, o clã Amato até parece herdeiro de uma linhagem que pode incluir "Feios, Porcos e Maus" (1976) ou "Reality" (2012), embora "A CIAMBRA" acabe por nunca se tornar tão grotesco como esses filmes de Ettore Scola e Matteo Garrone - mesmo que não faltem crianças a fumar e a beber cerveja logos aos primeiros minutos. Aceita, no entanto, heranças do neo-realismo, ainda que ameace desviar-se para cenários do realismo mágico - como nas sequências (breves) com chamas e um cavalo, simbolismo demasiado sublinhado entre o peso das origens do protagonista e a tentação da fuga à pressão familiar.
Momentos como esses, juntamente com a utilização talvez excessiva da câmara à mão (sobretudo nas cenas mais aceleradas) e a perda de algum fulgor narrativo na recta final trazem desequilíbrios ocasionais a estas duas horas, mas a força e singularidade do retrato mantêm-se intactas - à altura da viagem pessoal e obstinada de Pio, cuja afirmação é rematada com uma escolha tão pungente como comovente. E o final, a propor um novo começo, pode ser também o ponto de partida para mais um regresso a estas realidades.
Carpignano, norte-americano de ascendência italiana, tem-se confessado fascinado com esta Itália pouco vista e não coloca de parte mais filmes nascidos destas incursões exploratórias. "A CIAMBRA" mostra um cineasta capaz de traduzir esse fascínio numa das melhores propostas em cartaz.
3,5/5