Longe vão os dias em que os CHERRY GLAZERR se contentavam com um rock de garagem pachorrento através do qual Clementine Creevy, a mentora e vocalista do grupo, fazia a crónica do quotidiano (geralmente entediante) da sua adolescência, entre pequenas odes gastronómicas ("Grilled Cheese") ou despedidas a animais de estimação ("Glenn the Dwag ").
Das vinhetas despretensiosas de "Haxel Princess" (2014),os californianos saltaram para "Apocalipstick" (2017), disco no qual se levaram mais a sério enquanto fizeram sobressair preocupações feministas cruzadas com experiências sobre a entrada na idade adulta, mudança que se fez acompanhar por uma moldura sonora mais musculada e outra atenção à produção.
Os singles mais recentes do trio, "Juicy Socks" e "Daddi", já tinham insinuado que esse seria o caminho a seguir no próximo álbum e a nova canção não vem trair a suspeita. Com uma sonoridade mais saturada do que nunca, "WASTED NUN" retoma a escola de algum rock alternativo de meados dos anos 90, através de guitarras efervescentes e refrão orelhudo, e será uma amostra fiel do que esperar em "Stuffed & Ready". De acordo com a vocalista, o álbum agendado para 1 de Fevereiro será o mais portentoso da banda ao partir da pressão sobre as mulheres e de crónicas de frustração, auto-destruição e revolta.
Fica o alerta, juntamente com um videoclip cuja mistura garrida do sagrado e do profano parece ter qualquer coisa do universo neo-noir de Nicolas Winding Refn, o realizador de "Drive - Risco Duplo", "Só Deus Perdoa" ou "O Demónio de Néon":
Caso de sucesso a partir de uma postura do it yourself, "VINYL" marcou a estreia dos THE GIFT e um capítulo importante da pop nacional de finais da década de 90. 20 anos depois da edição, continua a acolher algumas das melhores canções da banda de Alcobaça.
Empreendedores acérrimos antes de essa prática se tornar um modelo-chave depois da viragem do milénio, os THE GIFT têm a história do seu primeiro álbum inevitavelmente associada à recusa de todas as editoras antes de avançarem com a edição própria.
A atitude obstinada acabou por alimentar um fenómeno de culto quando "VINYL" surgiu finalmente nos escaparates, em Dezembro de 1998, e resultou num triunfo invulgar quando o grupo de Sónia Tavares, Nuno Gonçalves, John Gonçalves e Miguel Ribeiro foi ganhando espaço nas playlists e tabela de vendas ao longo do ano seguinte - acolhimento com direito a concertos por todo o país, incluindo nos coliseus e Aula Magna, que confirmaram a desenvoltura do quarteto nos palcos.
Este abraço do grande público à banda formada em 1994 e até então praticamente desconhecida, aproximação que rompeu com a lógica dominante na indústria musical, tornou o álbum de estreia dos THE GIFT em material para um estudo de caso (em alguns aspectos comparável ao dos Silence 4, também em 1998 e também a apostarem no inglês, embora a Polygram tenha aberto as portas ao grupo de Leiria).
A ascensão foi tão imprevisível que às vezes parece ofuscar o que "VINYL" ainda tempara oferecer, além da narrativa inspiradora: as canções, algumas das mais conseguidas do quarteto de Alcobaça. Exemplo da banda certa no momento certo, o disco condensou linguagens da pop mais intrigante do final do milénio, com contaminações trip-hop a acessos breakbeat, e definiu logo o ADN de um grupo entusiasmado com a ponte entre o electrónico e o acústico.
Entre sintetizadores e samples, cordas e metais, a voz imponente de Sónia Tavares ajudou a demarcar a personalidade de um álbum então comparado aos caminhos que Björk, Portishead ou Lamb tinham percorrido poucos anos antes. Mas duas décadas depois, "VINYL" continua a soar a uma estreia consistente e às vezes muito inspirada, mais do que a um esforço derivativo ou apenas promissor. A promessa tinha ficado, aliás, no EP "Digital Atmosphere"(1997), e o salto qualitativo para a estreia num longa-duração foi notório.
A viagem entre o tom épico e intimista fez-se logo nos primeiros temas, da urgência de "Nowadays" à contenção ao piano de "My Lovely Mirror". E ambas sugeriram que havia mais (e melhor ou diferente) a descobrir por aqui além de "OK! Do You Want Something Simple?", cartão de visita que acabaria por acusar algum desgaste.
O tempero latino de "Real (get me for...)", a incursão pelo português de "Ouvir" (que só viria a ser o idioma dominante das letras do grupo em "Primavera", de 2012), o frenesim rítmico de "Changes" (com ecos do drum n' bass), a viragem instrumental da marcha de "La Folie" (talvez o momento mais contagiante e luminoso) ou a melancolia da belíssima "Dream with Someone Else's Dream" (a grande canção do disco?) deram sinais de uma banda com horizontes largos e capaz de estar à altura do desafio.
O último terço do alinhamento é menos surpreendente (15 faixas talvez sejam demasiadas), mas "VINYL" não deixa de merecer ser (re)descoberto do princípio ao fim, mesmo em tempos e plataformas menos condizentes com o formato álbum. "E é tão difícil ouvir sem sentir", pelo menos para quem continua a encontrar aqui uma das estreias mais memoráveis da pop nacional das últimas décadas...