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gonn1000

Muitos discos, alguns filmes, séries e livros de vez em quando, concertos quando sobra tempo

Muitos discos, alguns filmes, séries e livros de vez em quando, concertos quando sobra tempo

Angelo, Mario e o admirável mundo novo de um supermercado

O lado mais sombrio do colonialismo europeu, o quotidiano agridoce do trabalho num armazém, a homofobia mal disfarçada do universo do futebol... Estes foram três pontos de partida para algumas apostas da KINO - MOSTRA DE CINEMA DE EXPRESSÃO ALEMÃ, que decorreu há poucos dias em Lisboa e regressa a Coimbra no final do mês.

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"ANGELO", de Markus Schleinzer: Depois de uma primeira obra, "Michael" (2011), que gerou controvérsia ao seguir um pedófilo e uma criança raptada, o ex-director de casting regressa à realização e parte de uma história verídica ambientada no século XVIII. O resultado, no entanto, está muito longe dos ambientes habituais de muitos filmes de época "de prestígio", tendo em conta o formalismo clínico que parece ter "Barry Lyndon", de Stanley Kubrick, entre as referências. O distanciamento emocional com que Schleinzer acompanha o crescimento de uma criança africana, adoptada pela aristocracia vienense, também lembra que o currículo do austríaco inclui colaborações com o conterrâneo Michael Haneke, até porque a frieza e pessimismo do cineasta de "Brincadeiras Perigosas" é comparável a este retrato metódico e implosivo. Mas se "Angelo" tem alguma força no olhar cáustico sobre a aniquilação da diferença enquanto modus operandi da cultura ocidental ao longo de séculos, com especial ênfase no racismo, nunca chega a impor-se na vertente dramática, com a divisão da narrativa em três actos (e em períodos temporais distintos) a dificultar a aproximação às personagens. Até o protagonista acaba por ser só mais um instrumento da tese do realizador, sendo raras as cenas em que ultrapassa a função simbólica e o carácter decorativo a que era reduzido na corte - condição que o filme critica sem conseguir elevar-se por completo acima de um falhanço interessante.  

2,5/5

Entre Corredores 2.jpg

"ENTRE CORREDORES", de Thomas Stuber: Poucos armazéns serão tão poéticos como o do supermercado onde decorre grande parte da acção desta comédia melancólica. Os primeiros minutos, com um bailado de mercadorias e máquinas ao som de "O Danúbio Azul", de Strauss, dá logo conta do tom singular do filme, e o que se segue vai desenhando uma identidade que inicialmente remete para o humor minimalista e taciturno de Abbas Kiarostami cruzado com o estilo mais fantasioso e caramelizado de um Jean-Pierre Jeunet. Felizmente, Stuber não é tão hermético como o primeiro nem tão óbvio como o segundo. E se a sua proposta não deixa de ser estilizada, também acolhe algum realismo ao ir mergulhando na rotina solitária dos empregados de uma grande superfície comercial, apresentando em paralelo as pequenas cumplicidades e transgressões que se vão acumulando (curiosamente, uma das melhores sequências até decorre fora do supermercado, numa viragem fugaz para terrenos do thriller na casa de uma das personagens). O espectador chega com a entrada em cena do protagonista, a mais recente contratação, através do qual vai conhecendo os cantos deste espaço e as particularidades de uma segunda família (em alguns casos, a impor-se à primeira). Franz Rogowski é simultaneamente empático e enigmático, e embora comece a ameaçar cair no typecasting (as suas interpretações em "Happy End" e sobretudo no também recente "Em Trânsito" não estão muito distantes desta), mostra-se aqui uma aposta segura numa jornada laboral e emocional intrigante. Sandra Hüller, que conquistou mais atenções com "Toni Erdmann", é outro nome forte de um elenco a que o realizador vai dando tempo e espaço ao longo de duas horas de interesse desigual - não escondem que o argumento partiu de um conto (de Clemens Meyer) -, mas capazes de moldar um todo cativante e personalizado. Bela surpresa, e com direito a segunda exibição na KINO - agora em Coimbra, a 27 de Fevereiro.

3,5/5

Mario 2.jpg

"MARIO", de Marcel Gisler: Se a premissa faz esperar mais um relato boy meets boy, ao partir de dois jogadores de futebol sub-21 que se apaixonam, este drama suíço sabe esquivar-se a estereótipos de algumas narrativas LGBTQ+ enquanto traça um cenário de homofobia num contexto específico (e poucas vezes retratado). Embora seja um exercício ficcional, o filme surgiu após uma pesquisa de vários anos nos bastidores do universo do futebol e nem precisa de entrar num registo docudrama para traduzir uma realidade verosímil, apresentada sem que "Mario" se reduza a uma denúncia. Pelo contrário, Gisler dá sempre prioridade às personagens, da dupla principal a secundários de corpo inteiro, através de um argumento sólido e envolvente que coloca em jogo os conflitos entre as esferas pública e privada dos protagonistas. Desse impasse sai uma crónica sensível sobre a entrada na idade adulta o peso de escolhas decisivas - no caso, entre a vida amorosa e a profissional -, que assenta especialmente na figura que dá título ao filme. Max Hubacher, actor promissor distinguido com o Swiss Film Prize, não precisa de muitas palavras para dar conta do turbilhão emocional que acompanha a descoberta da sua sexualidade, e Gisler oferece algumas das melhores cenas do filme a captar os seus gestos e olhares sem escorregar em facilitismos dramáticos - sendo também bastante astuto a mover-se entre os meandros burocráticos da máquina desportiva. Uma equipa vencedora, portanto, e um retrato que não merece ficar confinado ao circuito dos festivais...

3,5/5

A pele (e câmara) onde eles vivem

Neneh Cherry 2018 2.jpg

 

"Fui ver a Neneh Cherry e toda a gente sacou dos telemóveis para a filmar, ao ponto de um homem pedir para me desviar porque estava à frente do telemóvel dele. (...) Em vez de comunicar através de ecrãs, parece que estamos todos a consumir através de ecrãs", recorda o realizador Akinola Davies ao explicar o que está na origem do novo videoclip de NENEH CHERRY, dirigido por ele.

 

Captadas em Beirute, as imagens que acompanham "NATURAL SKIN DEEP", o mais recente single retirado de "Broken Politics", dão seguimento à vertente declaradamente política da cantora sueca, já registada nas canções (e num videoclip) das apostas anteriores: "Kong", que abordava a crise dos refugiados, e "Shotgun Shack", centrado na violência e no acesso facilitado a armas.

 

Ao apresentar o novo vídeo, Davies diz que partiu das ligações entre o materialismo e a apatia para retratar uma profusão de telemóveis na capital do Líbano, num apelo que, não sendo especialmente inédito ou subtil, faz sentido no contexto do último álbum de Cherry. A canção, por outro lado, até está mais próxima da atmosfera dançável e agreste do disco antecessor, "Blank Project" (2014), do que tom contemplativo q.b. do novo. E tem ainda a particularidade de samplar "Growing Up", de Ornette Coleman, tema que contou com a colaboração de Don Cherry (padrasto da cantora), enquanto vai diluindo fronteiras entre o trip-hop e o jazz (mais uma vez com a produção de Four Tet).

 

"NATURAL SKIN DEEP" deverá ser também uma das canções a ouvir na estreia (finalmente!) de Neneh Cherry em palcos nacionais, no NOS Primavera Sound, no Porto, a 8 de Junho. Um dos concertos obrigatórios do festival, pelo menos se mantiver o nível das primeiras actuações centradas em "Broken Politics", no final do ano passado.