Esta hora continua mágica, 20 anos depois
Os dEUS já são uma banda da casa há muito, mas a celebração dos 20 anos de "THE IDEAL CRASH" tornou o novo regresso especial. E os belgas ofereceram aos fãs lisboetas praticamente tudo a que tinham direito na noite desta quarta-feira, no Coliseu dos Recreios.
"O único defeito deste disco foi ter sido gravado em Espanha. Em que raio estávamos a pensar?", brincou Tom Barman ao cumprimentar o público no concerto dedicado ao terceiro álbum do grupo. Mas em 1999, quando o registo deu um novo (e muito aguardado) passo no percurso de uma banda de culto considerável por cá, não faltou quem lhe tivesse apontado outros defeitos. 20 anos depois, não ficam grandes dúvidas de que "THE IDEAL CRASH" é o conjunto de canções mais perfeito de um grupo cujos discos antecessores deviam mais à estranheza e à experimentação declarada. Só que este caso de maturidade repentina não merecia ficar com o rótulo de viragem acomodada, e é bom ver que o estatuto de difícil terceiro álbum não vingou.
Ainda assim, o seu tom mais contemplativo talvez tenha levado a que este concerto dos dEUS ficasse aquém da euforia de passagens anteriores da banda por cá. Houve exemplos suficientes de adesão geral palpável, é certo, embora não suplantem a memória de interacções mais viscerais de outros tempos. Mas, enfim, o tempo passou, e passaram duas décadas desde "THE IDEAL CRASH". Bastou olhar à volta para confirmar isso mesmo, com a esmagadora maioria do público acima (e em alguns casos, bem acima) da casa dos 30... o que talvez também ajude a explicar reacções menos frenéticas, embora não necessariamente menos sentidas.
A postura relativamente comedida do público também não beliscou, de qualquer forma, uma actuação que fez jus ao disco. A se a opção de o alinhamento seguir a ordem das canções do álbum cortou algum factor surpresa, foi em parte compensada pela participação, logo no tema de abertura, "Put the Freaks Up Front", de um grupo de bailarinos (que Barman viria a dizer serem portugueses). E isso chegou para dar outra dinâmica ao espectáculo em mais duas ou três canções, casos de "Instant Street", naturalmente o episódio mais explosivo da noite (como não, com aquele crescendo instrumental no final a deitar tudo abaixo?), ou "Let's See Who Goes Down First", a faixa de "THE IDEAL CRASH" que está mais próxima da faceta espartana de "Worst Case Scenario" (1994) e "In a Bar, Under the Sea" (1996).
Outros temas, do clássico "Sister Dew" às belíssimas "One Advice, Space" ou "The Magic Hour" (cujo remate com o violino é dos grandes momentos da obra dos dEUS, embora ao vivo a guitarra tenha sido a protagonista) sublinharam a conjugação particularmente inspirada entre o mundano e o poético de um dos álbuns mais apaixonantes dos anos 90. E do princípio ao fim, todo o alinhamento foi bem defendido, com passagens pela pela fricção adocicada da faixa-título, pela sensualidade enleante de "Magdalena", pelo convite à dança de "Everybody's Weird" ou por uma "Dream Sequence #1" ainda tão onírica como o título sugere (e ainda uma viagem irrecusável do etéreo ao distorcido).
Foto: Everything Is New
Nem sempre foi um concerto acelerado, mas ainda assim pareceu ter passado rápido, ao longo de cerca de uma hora. Afinal, "THE IDEAL CRASH" dura 56m:14s, como Tom Barman fez questão de precisar, numa das suas intervenções bem humoradas e com o português a saltitar para o inglês (e vice-versa). A apresentação do novo guitarrista, Bruno de Groote, foi outra. "Chamamos-lhe Super Bruno. É um nome fixe, não é?", indagou.
Felizmente, a actuação não se esgotou nesse disco e o encore foi uma montra ecléctica q.b. da música dos dEUS. "Quatre mains", da colheita recente e cantada em francês, voltou a convocar os bailarinos para um dos momentos mais vertiginosos e teatrais, com o vocalista a aproximar-se do público e a acumular o papel de mestre de cerimónias com o de instigador dos colegas de palco.
Foto: Everything Is New
"Fell Off The Floor, Man", apesar de mais velhinha, não acusou a idade: continua a ser das canções mais deliciosamente esgrouviadas dos dEUS e mostrou um lado da banda pouco explorado ao longo da noite - com direito a trabalho de luzes personalizado, a alternar entre uma atmosfera sombria e cores garridas. E os fãs agradeceram essa vertente mais solta, deixando também uma das maiores demonstrações de frenesim do concerto.
O alinhamento, contudo, não voltou a recuar tanto na discografia do grupo: "Constant Now" e "The Architect" deram conta da solidez (não tremendamente aventureira) dos últimos discos enquanto que "Nothing Really Ends" serviu um final em beleza, e nem os muitos fãs que pediam "For the Roses" terão ficado decepcionados com a escolha. Claro que essa também teria sido muito bem-vinda, num eventual segundo encore que chegou a ser ameaçado em alguns minutos de suspense. Mas não, o regresso ficou-se pela cerca de hora e meia de duração (ou 1h40, sendo tão rigorosos como Tom Barman). De qualquer forma, teremos sempre "THE IDEAL CRASH"... e este regresso especial aos palcos (com continuação numa digressão europeia até Maio) também ajuda a que não o esqueçamos tão cedo.
4/5