Saltar para: Posts [1], Pesquisa [2]

gonn1000

Muitos discos, alguns filmes, séries e livros de vez em quando, concertos quando sobra tempo

Muitos discos, alguns filmes, séries e livros de vez em quando, concertos quando sobra tempo

A coisa esteve preta, a coisa esteve boa

Um dos artesãos da palavra mais promissores da nova música brasileira trouxe o seu "verso livre" a Portugal. Na passagem pelo Festival Músicas do Mundo, RINCON SAPIÊNCIA deixou Sines entregue às suas crónicas e ritmos a altas horas da madrugada.

 

Rincon Sapiência.jpg

Foto: FMM

 

"Se eu te falar que a coisa tá preta/ A coisa tá boa, pode acreditar", entoou RINCON SAPIÊNCIA no arranque do concerto junto à Praia de Sines, na passada sexta-feira, numa das suas passagens por palcos nacionais nos últimos dias (também subiu ao do Musicbox, em Lisboa, e ao do coreto de Santa Maria de Lamas, em Santa Maria da Feira).

 

Recebido por uma multidão entusiasta já depois das 3 da manhã, o MC tem sido apontado como um dos nomes em ascensão do hip-hop brasileiro, embora esteja longe de se limitar a esse género quando as suas canções são um testemunho da diversidade da música negra. É o próprio que o assinala, aliás, em "Mete Dança (Verso Livre)", numa declaração de intenções sem meias palavras: "Música, minha companhia/ Muito amor pela boémia/ Fodo com o rap, o funk, o pagodão/ Vivo na poligamia".

 

A uma obra que começou a ganhar corpo em 2011 podem ainda juntar-se samba, acessos rock, ritmos africanos, R&B ou trap, condimentos de um álbum de estreia elogiado ("Galanga Livre", de 2017) e que deverá ter sucessor este ano. A música é festiva, nascida de "batida, rima, DJ e um bom flow/ quatro integrantes clássicos, que nem os Beatles", como o rapper, compositor e produtor paulista enumera em "Linhas de Soco", um dos seus primeiros temas. Mas também é música socialmente consciente: "A batida é um soco, rap, a voz da plebe (...) Microfone é que nem o coelho na mão da Mônica".

 

Rincon Sapiência FMM 2.jpg

 

Desta conjugação nascem temas tão assertivos como lúdicos, que têm revelado um contador de histórias com um sentido de observação apreciável. Como outros, RINCON SAPIÊNCIA não se esquiva a apontar o dedo às clivagens sociais, racismo, insegurança ou sexismo, mas evita o recital de vitimização sisuda que acaba por dominar algum hip-hop activista (inclusive por cá). Aqui o humor também é uma arma e instrumento essencial de alguém que se deixou seduzir pela música urbana graças às possibilidades que abre aos jogos de palavras. "Essa é a parte que eu gosto mais: fazer um rap, umas rimas, uma levada", confidencia no final de "Linhas de Soco".

 

Comparado aos conterrâneos Criolo e Emicida, com os quais já colaborou, o MC também não anda longe da fluidez de alguns retratos quotidianos de Carlão ou de uma linguagem híbrida que chega a lembrar os Throes + The Shine mais recentes (sobretudo quando mergulha na exploração electrónica). Já Michael Jackson, Marvin Gaye ou Jorge Ben despertaram-lhe a curiosidade musical nos tempos da adolescência, antes de fazer parte de grupos como Ébanos, Plano B ou Equilíbrio Insano.

 

Rincon Sapiência FMM.jpg

 

Hoje, o rapaz que distribuía panfletos num bairro social de São Paulo tem a sua própria editora, MGoma, e uma banda que acompanha a sua entrega ao vivo. Uma percussionista, um guitarrista e um DJ partilharam o palco de Sines, por onde desfilaram temas do disco de estreia e canções reveladas nos últimos meses.

 

Depois "A Coisa Tá Preta", a vincar um início celebratório, a noite passou por portentos como "Afro Rep", um dos maiores hinos de "Galanga Livre" ("Quando dizem que é mimimi/ É assim que nascem os meus inimi") ou "Ponta de Lança (Verso Livre)", cuja viagem foi além de África para se envolver em música de dança baleárica na recta final (e incluiu Wesley Snipes, Lupita Nyong’o ou o Django de Tarantino no namedrop que foi deixando pelo caminho).

 

 

"Que delícia", atirou o brasileiro mais de uma vez, confessando-se surpreendido com a adesão generalizada a altas horas mas sem se alongar no discurso. Deixou-o antes para as canções, num espectáculo praticamente sem pausas, servido por um rapper com um flow seguro e instrumentais versáteis q.b.. Apesar de já tardia, foi uma hora que passou a correr. Mas que também poderia ter sido mais galvanizante se tivesse encontrado espaço para um encore ou para canções como "Moça Namoradeira" - uma das mais fortes deste catálogo e com potencial para aumentar ao vivo o estrondo que deixa no disco.

 

Uma limitação compreensível, tendo em conta que o concerto arrancou com quase uma hora de atraso porque o anterior, noutro palco do festival, se alongou. Para muitos dos que lá estiveram, terá servido de pretexto convidativo para (re)descobrir "Galanga Livre" (que pode ser ouvido acima e está disponível para download gratuito aqui) e retratos tão eloquentes como o de "A Volta pra Casa" ("Ela caminha, semblante preocupado/ Escuridão, o bar da rua se encontra fechado/ Quanto vale uma vida? Pensa no seu pivete/ Na bolsa tem a Bíblia, também tem canivete") ou "Ostentação da Pobreza" ("Criança não 'trabaia', criança dá 'trabaio'/ Maioridade penal eles querem a redução, caraio!"). E não será tempo perdido: a rima de RINCON SAPIÊNCIA tá boa, pode acreditar.

 

 

Este "black mirror" não desilude

Angel Olsen.jpg

 

Ao anunciar o lançamento do próximo álbum, "ALL MIRRORS", para 4 de Outubro, ANGEL OLSEN aumenta a curiosidade ao estrear uma canção que eclipsa praticamente todo o alinhamento do antecessor, o algo tépido (mas tão sobrevalorizado) "MY WOMAN", de 2016.

 

A faixa-homónima e single de apresentação do quarto disco propõe uma viragem sonora que troca o rock indie e a folk pelos sintetizadores, aos quais se juntam orquestrações que reforçam uma grandiosidade a milhas das origens lo-fi da norte-americana. E se é verdade que o resultado não anda longe das atmosferas de muitas descendentes de Kate Bush surgidas nos últimos anos (e da faceta electrónica de Susanne Sundfør em particular), deixa um belo ponto de partida para um álbum inspirado pelo lado sombrio, por uma capacidade renovada de amar e pelos desafios da mudança - além de marcar o reencontro com John Congeleton, produtor de "Burn Your Fire For No Witness" (2014), o registo mais recomendável da cantautora até agora.

 

O videoclip, assinado por outro colaborador habitual, Ashley Connor, aprimora a carga onírica e cinematográfica da canção, que talvez também vá dominar os concertos anunciados para Portugal em 2020: a 23 de janeiro no Capitólio, em Lisboa, e a 24 no Hard Club, no Porto. Para já, vale a pena ir contemplando (e escutando) estes espelhos:

 

 

Pág. 1/7