Qualidade em série(s) entre Itália, Brasil e Inglaterra
Não têm sido das séries mais celebradas nos balanços do ano, mas também são exemplo da qualidade e diversidade da ficção televisiva actual (que está longe de se restringir ao mercado norte-americano). "GOMORRA", "PICO DA NEBLINA" e "THE END OF THE F***ING WORLD", três sagas com estreias ou regressos a (re)descobrir:
"GOMORRA" (T4), HBO Portugal: A aposta da Sky Italia, a cargo de Roberto Saviano e inspirada no seu livro homónimo, tem sido uma série capaz de manter a coerência de temas e ambientes enquanto vai introduzindo novos protagonistas e tramas. A quarta temporada não perde fulgor nem intensidade enquanto segue o projecto mais ambicioso de Gennaro Savastano, a única personagem que se manteve desde os primeiros episódios da saga, e os desafios de Patrizia Santore como sua sucessora na liderança da Camorra napolitana. Tal como as épocas anteriores, esta é implacável em relação ao destino muitas vezes trágico das figuras que acompanha, independentemente da sua relevância na história, tanto que o final de alguns episódios acaba por ser previsível q.b. ao deixar mais um cadáver pelo caminho. Mas mesmo com essa limitação narrativa, o mergulho sem concessões neste submundo está entre as experiências mais empolgantes do ano no pequeno ecrã, com o cruzamento de luxo e decadência urbana a deixar cenários visualmente arrebatadores enquanto a realização (de Francesca Comencini ou Claudio Cupellini) impressiona pelo realismo cortante (auxiliado por um elenco mais uma vez sem falhas). Juntamente com "O Traidor", de Marco Bellocchio, está aqui o retrato da máfia surgido nos últimos tempos a não perder - e com a combinação de tensão, urgência, estudo de personagens e agilidade formal que faltou a "O Irlandês", de Martin Scorsese.
4/5
"PICO DA NEBLINA" (T1), HBO Portugal: Série do ano? Ou, pelo menos, uma das grandes surpresas? A primeira temporada do drama de Quico Meirelles - que tem o pai, Fernando "Cidade de Deus" Meirelles, na produção e realização de alguns episódios - é certamente das mais subestimadas, desde logo pela própria HBO, que não parece ter reparado muito no que tinha em mãos (e preferiu insistir na promoção de sagas como "Mundos Paralelos"). É pena, porque estes dez episódios confirmam a óptima impressão deixada pelo piloto enquanto apresentam um Brasil alternativo no qual a cannabis foi legalizada. A partir da experiência de um pequeno traficante, "PICO DA NEBLINA" finta lugares comuns de histórias de narcotráfico e propõe um dos olhares mais inspirados sobre um país assente em clivagens sociais extremas, sem no entanto tornar as suas personagens em bandeira da sua condição (e aí mostra como se faz a algum cinema, incluindo o de autor, como o muito falado e muito frustrante "Bacurau", seu conterrâneo). O humor, nunca forçado, surge como trunfo essencial numa narrativa por vezes agreste mas que nunca escorrega para o miserabilismo, mantendo uma energia e frescura contagiantes. E Biriba, o protagonista que atravessa aqui um período de inquietação pessoal, familiar, laboral e moral, é das figuras mais memoráveis deste ano televisivo, para a qual contribui a entrega do excelente Luis Navarro - apenas um dos nomes em destaque de um grande elenco de actores profissionais e amadores. Venha a segunda temporada, que personagens como esta merecem mais.
4/5
"THE END OF THE F***ING WORLD" (T2), Netflix: Uma das propostas mais convidativas para binge-watching do momento continua a história trágico-cómica de dois adolescentes britânicos, numa temporada de episódios curtos (alguns não chegam aos 20 minutos de duração) que quase podem ser vistos como um filme. E esta é uma boa sequela de uma história nascida numa BD de Charles Forsman, que terminava de forma especialmente climática (tal como a primeira temporada) e que ganha agora outro fôlego no pequeno ecrã. Alguns fãs estavam cépticos quanto a uma continuação, mas tal como em "Watchmen", também este ano (igualmente baseada numa graphic novel de culto), o risco compensou. Charlie Covell, que se tinha destacado sobretudo como actriz até aqui, volta a mostrar-se uma showrunner estimável ao conceder sensibilidade a uma jornada que poderia cair no exercício de estilo cínico ou angustiado. Não falta humor negro, é certo, mas também se sente um coração a bater, sobretudo com a entrada em cena de Bonnie, uma nova co-protagonista com mais um percurso vincado pelo trauma e inadaptação. E Naomi Ackie, nesse papel, deixa um desempenho que não fica a dever nada aos de Alex Lawther e Jessica Barden, decisivos para que este retrato da entrada na idade adulta seja convincente e comovente.
3,5/5