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gonn1000

Muitos discos, alguns filmes, séries e livros de vez em quando, concertos quando sobra tempo

Muitos discos, alguns filmes, séries e livros de vez em quando, concertos quando sobra tempo

O cabeça de lagarto e os caçadores de dragões

A animação japonesa tem sido uma das apostas regulares da Netflix nos últimos meses. E além dos clássicos do género, vão chegando cada vez mais produções recentes ao serviço de streaming: é o caso de "DOROHEDORO" e "DRIFTING DRAGONS", duas das boas séries deste ano.

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"DOROHEDORO" (T1), Tokyo MX/Netflix: Forte candidata a série mais esgrouviada de 2020, é a história de um homem que tenta descobrir que feiticeiro o deixou com uma cabeça de lagarto enquanto vai encontrando (e despachando) dezenas de magos.

Ambientada num universo pós-apocalíptico e de aura cyberpunk, a saga que se baseia na manga de Q Hayashida, surgida no ano 2000, não se coíbe de oferecer violência gratuita (com direito a gore e mutilações), figuras e situações bizarras (de um antagonista obcecado por cogumelos a um insecto gigante domesticado), humor nonsense e conjugações inesperadas de ambientes sujos e urbanos com feitiçaria arcaica (acompanhadas de uma animação que sabe conjugar elementos 2D e 3D).

A mistura arrisca-se a ser de digestão difícil ao primeiro embate, mas vale a pena insistir quando o criador e realizador do anime, Yûichirô Hayashi, tem um carinho óbvio pelas personagens, que se vão revelando mais do que mera carne para canhão. O grupo de vilões idiossincráticos, dos temíveis aos desastrados, até acaba por se revelar bem mais carismático do que o protagonista, entregue a um arco de vingança sem grandes particularidades (e que demora o seu tempo a desenvolver algum conflito dramático). E se o final pode ser acusado de deixar demasiadas pontas soltas, além da porta escancarada para uma segunda temporada, a diversão até lá é garantida - pelo menos para quem não se sentir intimidado por uma proposta tão delirante como visceral.

3/5

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"DRIFTING DRAGONS" (T1), Fuji TV/Netflix: Adaptação da manga homónima de Taku Kuwabara, editada a partir de 2016, esta aventura steampunk desenha a jornada de um grupo de caçadores de dragões a bordo de um navio voador. A rotina é apresentada a partir do ponto de vista de uma adolescente, o membro mais recente da tripulação, e a sua capacidade de deslumbramento facilmente contamina o espectador de uma série que acerta tanto na construção de um mundo singular e coerente como nas ideias e opções visuais.

Se a mitologia dos dragões tem sido recuperada por sagas como "A Guerra dos Tronos", as criaturas deste universo não poderiam ser mais diferentes desse arquétipo feroz e ameaçador: são seres imponentes mas com uma graciosidade zen que os leva a atacar apenas quando são provocados - e não têm os disparos de fogo entre as armas. Mas essa variação não impede que continuem a ser caçados, o que rendeu algumas críticas à série, acusada de encorajar a legitimação da caça às baleias.

Mais interessante será olhar para este anime como um descendente espiritual de retratos na linha de "O Velho e o Mar", até porque a protagonista vai atravessando um questionamento moral ao longo de 12 episódios que pedem continuação: há aqui mais personagens intrigantes a explorar e os últimos capítulos vão subvertendo a lógica maniqueísta de caçadores e presas. E depois há as muitas receitas de iguarias à base da carne de dragão, um dos sinais da excentricidade ocasional que tempera uma história que começa bem e sugere poder voar mais alto.

3,5/5

 

Fundo de catálogo (115): Scissor Sisters

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Em vez de um difícil segundo álbum, os SCISSOR SISTERS tiveram uma fase mais crítica na altura de editar o terceiro. Mas dez anos depois, "NIGHT WORK" continua a comprovar que o risco valeu a pena - é o melhor dos nova-iorquinos e um dos grandes discos pop da década passada.

De banda do circuito underground da cidade que nunca dorme a fenómeno global, a ascensão dos SCISSOR SISTERS foi rápida e inesperada. Entre o álbum de estreia homónimo, editado em 2004, e o sucessor "Ta-Dah", nascido dois anos depois, o quarteto viu a sua sensibilidade queer e camp ser abraçada pelo mainstream, sobretudo fora de portas, enquanto encontrou vias para uma pop moderna com descendências óbvias dos anos 70.

Um dos cartões de visita, a versão muito livre (e controversa) de "Confortably Numb", dos Pink Floyd, deu logo sinais de um atrevimento que foi da música à imagem, mas a irreverência dos primeiros tempos esmoreceu quando o alinhamento inicial do terceiro disco continha canções mais acomodadas. Ou assim pensou Jake Shears, além de vocalista o principal compositor, que decidiu guardar mais de uma dezena de inéditos na gaveta e recomeçar. Só que ao contrário dos álbuns anteriores, recomeçou fora de Nova Iorque, elegendo Berlim como refúgio de um período no qual lidava com uma depressão.

Shears não esteve sozinho na capital alemã. Os amigos Pet Shop Boys, que também lá moravam em 2008/2009, ajudaram-no a situar-se criativamente e sugeriram um produtor para o novo álbum: Stuart Price, que tinha produzido "Confessions on a Dance Floor" (2005), de Madonna, um dos picos instantâneos tanto da obra do britânico como da rainha da pop. A ideia rapidamente ganhou forma e ajudará a explicar porque é que o terceiro disco dos SCISSOR SISTERS é o mais virado para as pistas.

Price não nada era estranho a ambientes electrónicos (afinal, tinha sido o homem dos Les Rythmes Digitales ou Zoot Woman) e Shears redescobriu-os em discotecas berlinenses como a icónica Berghain - em noites de sexo, drogas e música de dança que teriam reflexo directo na segunda (e definitiva) versão de "NIGHT WORK", das letras à sonoridade.

O apelo físico e noctívago destas canções reveladas no Verão de 2010 deve menos aos anos 70 do que à década seguinte, sobretudo a hinos synth-pop subversivos como "Relax", dos Frankie Goes to Hollywood, que Shears apontou como canção-chave para o conceito do disco. E se a escola dos Bee Gees ou de Elton John não terá sido completamente esquecida, "NIGHT WORK" sugere principalmente audições dos cúmplices Pet Shop Boys ou dos seus contemporâneos Soft Cell, em especial na faceta mais sombria do alinhamento (caso dos relatos de noites bravas das superlativas "Sex and Violence" ou "Something Like This", entre a solidão e a comunhão, a festa e a decadência).

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O humor não fica de fora e incita algumas das letras mais espevitadas dos SCISSOR SISTERS, em faixas na linha de "Harder You Get" ("Don't point that thing at me unless you plan to shoot"), "Whole New Way" ("My sneak up from behind is gonna blow your mind") ou "Skin This Cat" (esta a única cantada por Ana Matronic, aqui próxima da vertente luxuriante dos Goldfrapp).

O capítulo mais ousado do grupo desde os tempos em que era um fenómeno de nicho foi logo vincado pela capa do disco, uma foto de Robert Mapplethorpe ao bailarino Peter Reed, tirada em 1980. Mantê-la transformou-se numa das maiores batalhas de Jake Shears, que encontrou resistência na editora e mesmo dentro da banda.

O homoerotismo da imagem esteve longe de ser acidental, abrindo a porta a um alinhamento que, mais do que um olhar amplo sobre a vida nocturna, explora com alguma crueza a noite de ambientes LGBTQI+, sem cedências a um filtro heteronormativo. "Fire With Fire", o primeiro single, será das poucas excepções e é dos temas dos quais o vocalista revelou estar menos orgulhoso. Apontado às playlists radiofónicas, também é daqueles em que os SCISSOR SISTERS se levam mais a sério e destoa particularmente na primeira metade do disco, de tom espirituoso e desbragado.

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"Invisible Light", por outro lado, fecha o álbum da melhor forma e mostrou-se um single mais condizente com um álbum ecléctico e destemido. Sir Ian McKellen, convidado de honra numa participação em spoken word, ajuda a deixar aqui um dos capítulos mais memoráveis e épicos da banda - e que pode ser encarado como descendente espiritual do hedonismo assombrado de "Relax".

Menos conhecidas foram as contribuições de Santigold, na composição e coros da new wave desopilante de "Running Out", e de Kylie Minogue, cuja voz também se ouve lá ao fundo numa "Any Which Way" que faz a ponte com os discos anteriores. Mas são dois bons motivos para (re)descobrir o pico criativo de um percurso em hiato desde o registo sucessor, o mais irregular "Magic Hour" (2012), e que apenas teve sucessão na (promissora) carreira a solo de Shears. "You can find your life in the night life", cantou aqui o norte-americano - e acabou por se (re)encontrar na noite de Berlim e num terceiro álbum revigorante.