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gonn1000

Muitos discos, alguns filmes, séries e livros de vez em quando, concertos quando sobra tempo

Muitos discos, alguns filmes, séries e livros de vez em quando, concertos quando sobra tempo

O medo é um lugar estranho

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Do primeiro para o segundo álbum ("Loom", de 2014, e "Fall Forever", de 2016, respectivamente), os FEAR OF MEN foram abandondando a indie pop de travo twee que marcou a sua fase inicial (registada na compilação "Early Fragments", em 2013) ao optarem por ambientes mais densos e soturnos. E parece ser por aí que querem ir avançando até um eventual terceiro longa-duração, já que o novo single (e o primeiro novo tema em quatro anos) vem acentuar a carga gótica da dupla britânica.

"INTO STRANGENESS" deixa para trás de vez as heranças de uns Smiths, Sundays ou Camera Obscura enquanto condensa experiências de um período conturbado para Jessica Weiss, vocalista e mentora do projecto. A mudança de rumo mostra o duo de Brighton mais assombrado e enigmático do que nunca através de uma conjugação intrigante de cordas, sintetizadores, percussão e sopros embalada por um videoclip gravado em isolamento - com fotografia a preto e branco e atmosfera sinistra q.b..

O papel principal é dela (e só dela)

"A VERDADE" é o primeiro filme de Hirokazu Koreeda fora de portas e tranquiliza quem temia que o cineasta japonês se aburguesasse em França, mesmo que este drama familiar tão sóbrio como caloroso seja menos memorável do que a interpretação de Catherine Deneuve.

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Depois de "Shoplifters: Uma Família de Pequenos Ladrões" (2018), obra que lhe reforçou a aprovação e visibilidade internacional, um dos realizadores-chave do cinema japonês das últimas décadas arrisca o primeiro passo criativo noutro país - e também noutro idioma. França, onde ganhou a Palma de Ouro em Cannes, há dois anos, é agora o cenário de um filme que, apesar da mudança de contexto geográfico e cultural, retoma territórios habituais da sua obra: os das histórias familiares, instigadoras de alguns dos seus títulos mais elogiados (do antecessor supracitado ao marcante "Ninguém Sabe", que revelou o seu nome a muitos espectadores fora de portas no início do milénio).

"A VERDADE" não desonra os pergaminhos de um autor conhecido pelo olhar empático e complexo sobre os relacionamentos humanos, e em especial as dinâmicas entre pais e filhos. Ou neste caso, entre mães e filhas, a partir da reaproximação de duas mulheres vividas por Catherine Deneuve e Juliette Binoche, ambas dirigidas pelo japonês pela primeira vez. Ethan Hawke acompanha-as, mas Koreeda nunca tenta disfarçar que este é um filme assente nelas e nos caminhos que as movem entre a cumplicidade e a crispação, aqui sempre de forma mais ou menos velada - ou não fosse esta uma história que desenterra ressentimentos e revelações de um passado turvo.

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Deneuve encarna uma actriz tão respeitada e icónica como caprichosa e emocionalmente distante, e qualquer semelhança com a realidade não será pura coincidência num drama que também sabe recorrer ao humor, muitas vezes para sublinhar um argumento auto-consciente que até aposta no modelo de filme-dentro-do-filme (a partir de uma obra de ficção científica vincada pela relação mãe-filha na qual a protagonista participa). Mas o jogo de espelhos vai mais longe através do livro de memórias, intitulado "A Verdade", que a estrela veterana se prepara para lançar. E a ocasião motiva, de resto, a visita da filha, do genro e da neta, que vivem nos EUA.

Num reencontro que dura poucos dias, Koreeda mergulha em décadas de decisões, rivalidades, segredos e ausências, revisitando a vida pessoal e profissional da personagem de Deneuve e as marcas que o braço de ferro entre ambas deixaram nos que estavam à sua volta. As duas actrizes mostram-se à altura da viagem emocional, embora "A VERDADE" acabe por se revelar sobretudo uma ode à mais velha, que tem aqui um dos papéis mais fortes em muitos anos e responde com a entrega que se esperaria. E nem o facto de encarnar uma versão, pelo menos em parte, dos traços associados à sua persona pública demove o carisma nem as camadas de uma mulher inteira, que se sobrepõe ao estereótipo de diva inacessível.

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Binoche, não tendo a mesma atenção do argumento e da câmara, é ainda assim determinante para alguns dos melhores momentos do filme: as cenas entre as duas, das mais espirituosas às conflituosas, que provam que Koreeda ainda tem muito a dizer sobre as particularidades das relações familiares. E sabe como o dizer, mais uma vez com inteligência emocional e sem fazer juízos, por muito que "A VERDADE" não tenha a força dramática de alguns antecessores - ocasionalmente, o tom sóbrio confunde-se com o morno e a banda sonora agridoce é um facilitismo que chega a sugerir um realizador acomodado.

Além de dirigir duas grandes senhoras do cinema francês, Koreeda mantém-se um director de actores confiável ao escolher Ethan Hawke, que dá o corpo às balas disparadas pela personagem da sogra (as que não poupam a televisão nem as estrelas americanas são das mais divertidas), e Clémentine Grenier, a mais jovem mulher desta família e também o mais recente exemplo de um talento infantil revelado pelo japonês. Deneuve pode ser quem brilha mais, mas "A VERDADE" ainda vai tendo outros encantos.

3/5