A padaria marroquina
Candidato marroquino ao Óscar de Melhor Filme Internacional de 2020 depois de ter estreado em Cannes no ano passado, "ADAM" é um belo relato da cumplicidade feminina e um primeiro passo promissor de Maryam Touzani nas longas-metragens, abrindo (literalmente) o apetite para mais.
Depois de um percurso como jornalista, Maryam Touzani tem-se dedicado de forma cada vez mais regular ao cinema nos últimos anos, tanto à frente como atrás das câmaras. Além de ter protagonizado e co-assinado o argumento do aplaudido "Razzia - Céu de Casablanca" (2017), de Nabil Ayouch (seu marido e produtor do seu novo filme), a marroquina estreou-se na realização através de curtas-metragens e "ADAM" vem agora revelar que já está à vontade para experimentar o formato das longas.
Tal como os títulos anteriores, este é um drama doméstico e às vezes a sugerir influências de um olhar documental pelo modo como capta o quotidiano de duas mulheres de perfis consideravelmente diferentes num bairro de Casablanca: Abla, uma viúva de meia-idade que cuida da pequena filha sozinha e dedica todo o seu tempo à sua padaria, e Samia, uma jovem grávida afastada da sua comunidade e decidida a encontrar trabalho. A primeira começa por oferecer abrigo à segunda, embora com alguma renitência, e apenas por poucos dias. Mas a estadia vai-se prolongando e a dinâmica diária de ambas (e da filha de Abla) vai sofrendo mudanças graduais, entre entendimentos e atritos.
Concentrado na ligação emocional das suas protagonistas, e quase sempre ambientado na casa (e padaria) que partilham, "ADAM" não é especialmente surpreendente nas viragens que o relacionamento vai tendo, mas ganha muito pela especificidade do seu contexto e pela sensibilidade evidente que Touzani demonstra na construção de duas personagens complexas e credíveis - sendo também uma directora de actores a ter em conta, tirando interpretações sentidas de Lubna Azabal e Nisrin Erradi.
Baseando-se numa história verídica vivida pela sua família, quando os seus pais acolheram uma rapariga grávida, a argumentista e realizadora não torna este relato num "caso da vida" exemplar e dá conta de uma voz autoral enquanto aborda o conservadorismo ainda dominante na sociedade marroquina, e em especial o lugar confinado à mulher. E quando uma das mulheres desta história parece destinada ao rótulo de mãe solteira, vê as portas a fecharem-se inevitavelmente, tanto para si como para o bebé que terá a seu cargo.
Embora ciente dos dramas e limitações que marcam as suas protagonistas, Touzani não faz de "ADAM" um panfleto de tom de lamento, captando-as com a dignidade que merecem sem deixar de expor o espectador à dureza de Abla ou à obstinação de Samia - mesmo que esta ganhe contornos extremos numa recta final mais climática do que a contenção do que está para trás faria esperar.
Atenta aos gestos e olhares, apostando em grandes planos dos rostos expressivos das actrizes e valendo-se das possibilidades da câmara à mão num espaço restrito, a realizadora deixa uma primeira longa-metragem auspiciosa e com algumas cenas memoráveis: uma dança tão tensa como libertadora, um olhar reconciliador com o corpo feminino em frente ao espelho ou a confecção de uma iguaria árabe que, mais do que apetitosa, se mostra inesperadamente sensual. E também tempera o drama com algum humor oportuno, muitas vezes a contrastar com a sisudez de Abla - servido pelo atrevimento da sua filha ou pela timidez de um colaborador e pretendente.
Poderá acusar-se "ADAM" de ter sequências demasiado longas e até eventualmente supérfluas, acompanhadas de oscilações de ritmo, que impedem o todo de estar à altura de algumas das partes. Mas deixa muita vontade de ver Touzani apurar esta receita num sucessor.
3/5