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Muitos discos, alguns filmes, séries e livros de vez em quando, concertos quando sobra tempo

Muitos discos, alguns filmes, séries e livros de vez em quando, concertos quando sobra tempo

Quando o cinema não fica dependente de um vírus

Vincada pela resiliência depois de um adiamento, a 17.ª edição do INDIELISBOA insiste em ocupar vários espaços da capital entre 25 de Agosto e 5 de Setembro. E deixa mais de 200 propostas para ir voltando às salas de cinema.

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Inicialmente agendado para finais de Abril e inícios de Maio, o festival de cinema independente foi uma das vítimas da COVID-19 ao ver-se obrigado a arrancar já perto da rentrée. Mas não abdicou de "uma experiência física e colectiva" num momento em que o virtual se impôs como a alternativa possível para muitos. Contempla, no entanto, sessões ao ar livre em alguns dos seus espaços deste ano, com uma programação que passará pela Culturgest, Cinema São Jorge, Cinema Ideal, Cinemateca Portuguesa (esplanada incluída) e Capitólio (este uma estreia, com cinema no terraço).

Dos cerca de 240 filmes agendados, os principais destaques são duas Retrospectivas, uma dedicada ao realizador senegalês Ousmane Sembène e outra a celebrar os 50 anos do Forum Berlinale. Em foco estará a realizadora franco-senegalesa Mati Diop, autora de "Atlantique", e não faltam também as secções habituais: Competições Nacional e Internacional e Novíssimos, Silvestre, Director’s Cut, IndieMusic, Boca do Inferno e IndieJúnior.

A sessão de abertura, esta terça-feira, às 19h00, no Cinema São Jorge, está a cargo de "La Femme de Mon Frère", a estreia na realização da actriz Monia Chokri, conhecida de alguns filmes de Xavier Dolan. E como a programação é vasta, ficam para já três sugestões de pontos de partida - e eventualmente mais pistas para o roteiro nos próximos dias:

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"NAFI'S FATHER", de Mamadou Dia: A primeira longa-metragem do realizador senegalês chega com boa reputação do Festival de Locarno (no qual ganhou o Leopardo de Ouro Cineastas do Presente e de Melhor Primeiro Filme) e retrata a ameaça do fundamentalismo islâmico numa pequena comunidade, a partir do confronto entre dois irmãos que tentam casar os filhos. Num ano em que o IndieLisboa homenageia Ousmane Sembène, este drama familiar mostra que há outros nomes seus conterrâneos (mas de uma nova geração) a descobrir, e Dia tem sido elogiado pela autenticidade e humanismo que conferiu a este retrato - e que em parte se explicará pela sua passagem pelo cinema documental em algumas das curtas-metragens. Um filme tem direito a duas exibições: dia 27 de Agosto, às 21h30, no Capitólio, e dia 29, às 21h30, no Grande Auditório da Culturgest. Trailer

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"O FIM DO MUNDO", de Basil da Cunha: A Reboleira volta a ser o cenário do novo filme do realizador de "Até Ver a Luz" (2013), numa história que também é a de um regresso: a de um rapaz de 18 anos que volta às origens depois de ter estado num centro de detenção juvenil. Mas não só o bairro não está como o deixou como aqueles com que contava passaram por mudanças. Drama ancorado no realismo social com um olhar sobre os marginalizados e a diferença, o filme recorre, à semelhança do antecessor, a actores não profissionais de ascendência africana, que cresceram no subúrbio lisboeta. Tal como "Baamun Nafi", teve Locarno entre os festivais por onde passou com distinção (foi nomeado para o Leopardo de Ouro) e pode ser visto a 29 de Agosto, às 18h30, e a 2 de Setembro, às 18h45, na na Sala Manoel de Oliveira do Cinema São Jorge. Trailer

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"VENDRÁ LA MUERTE Y TENDRÁ TUS OJOS", de José Luis Torres Lleiva: É bem capaz de ser dos filmes mais duros do IndieLisboa 2020, este drama chileno que cruza amor e tragédia ao centrar-se numa relação entre duas mulheres: uma acamada devido a uma doença terminal, a outra a sua cuidadora. Um requiem intimista que passa por fases anteriores do relacionamento amoroso, cinema de câmara no qual alguns novos realizadores sul-americanos se têm especializado. Um relato a conhecer a 30 de Agosto, às 19h15, no Pequeno Auditório da Culturgest. Trailer

Histórias negras importam. E nesta vale quase tudo

"LOVECRAFT COUNTRY" é a nova série-sensação da HBO e mais uma a colocar o dedo na ferida do racismo sistémico nos EUA, depois de "Watchmen". Mas a julgar pelo primeiro episódio, esta viagem promete ser ainda mais imprevisível e avessa a regras.

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"As histórias são como as pessoas. Não são perfeitas, mas podemos amá-las apesar das falhas", diz o protagonista de "LOVECRAFT COUNTRY" num dos diálogos iniciais da nova série disponível na HBO Portugal. E embora se refira a aspectos moralmente questionáveis das aventuras de John Carter, das quais é fã acérrimo, parece reagir à histeria que tomou conta da reavalição - e dos apelos à censura - de um número crescente de obras artísticas em 2020, com destaque para "E Tudo o Vento Levou" - um dos casos mais mediáticos, na sequência de acusações de racismo.

As falhas continuam lá, responde a interlocutora de Atticus "Tic" Freeman, o herói desta saga que não esquece as que lhe abriram caminho. Mas se não podemos mudar o passado, podemos aprender com ele sem entrar numa cruzada em nome da "cancel culture". E apostar em novas narrativas, algumas delas curiosamente impulsionadas pela mesma HBO que esteve no centro da polémica em torno do clássico de Victor Fleming.

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Depois de "Watchmen" ter surpreendido no ano passado, ao adaptar para televisão uma novela gráfica transgressora como poucas no campeonato dos super-heróis e recontextualizando-a num clima de segregação racial, "LOVECRAFT COUNTRY" revela algumas semelhanças ao também partir de um mergulho no racismo nos EUA através da inspiração assumida em géneros literários populares (e muitas vezes considerados menores), caso de romances de cordel onde tanto cabem contos de fantasia e ficção científica como de terror e aventura (e a banda desenhada também tem uma palavra a dizer aqui).

A sequência inicial, com uma invasão extraterrestre in media res, dá logo conta da lógica de vale tudo dominante nesta narrativa, mesmo que boa parte do que se segue seja muito mais terra-a-terra, a lembrar mais o retrato de época dos anos 50 na linha de um "Green Book - Um Guia Para a Vida" - aqui a debruçar-se sobre uma comunidade negra de Chicago. Mas se o filme de Peter Farrelly era bem-comportado, a série criada por Misha Green (argumentista de "Heroes" ou "Sons of Anarchy") e baseada no romance homónimo de Matt Ruff não tem medo de sujar as mãos enquanto expõe a diferença de tratamento a que os cidadãos afro-americanos eram sujeitos, num primeiro episódio que tanto dá conta do preconceito em cenas prosaicas, do quotidiano de um bairro, como a leva ao limite numa recta final tão vertiginosa como delirante - e sem medo de se atirar ao camp ou ao gore.

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A viragem para terrenos do humor negro e do terror chega a lembrar alguns momentos de "Foge", de Jordan Peele, e não por acaso o realizador é um dos produtores executivos, juntamente com J. J. Abrams. Yann Demange, cujos créditos incluem "Top Boy" e "'71", realiza o primeiro episódio e sai-se bem na gestão de uma tensão que se vai adensando num acumular de situações-limite. Talvez até sejam demasiadas, embora fique na retina uma perseguição automóvel trepidante que coloca em cena vilões deliberadamente caricaturais. E enquanto qualquer tentação de realismo vai ficando cada vez mais para trás, Jonathan Majors não deixa de ser um protagonista credível na pele de um ex-soldado da Guerra da Coreia que se faz à estrada à procura do pai - ele que também integrou o elenco do recente "Da 5 Bloods": Irmãos de Armas", de Spike Lee, filme menos ágil no balanço de gravidade e irrisão.

Jurnee Smollett e Courtney B. Vance, com menos tempo de antena (sobretudo ela), dão corpo e carisma a companheiros de viagem com potencial para alargar os ângulos temáticos de uma série já de si ambiciosa. No arranque, há espaço para uma vénia a James Baldwin e outra a Alexandre Dumas, sem esquecer a herança mais evidente de H. P. Lovecraft, escritor decisivo na abordagem ao terror cuja reputação ficou manchada pela postura racista. Mas uma série como "LOVECRAFT COUNTRY" prova que ainda é possível continuar a revisitar e homenagear a sua obra, apesar das falhas.

"LOVECRAFT COUNTRY" estreou a 17 de Agosto na HBO Portugal e o primeiro episódio foi disponibilizado gratuitamente. Os próximos estreiam às segundas-feiras.