BRENDAN HENDRY limpou muitas casas de banho e levou muitos encontrões de clientes do bar onde trabalhava até conseguir juntar dinheiro para financiar o seu primeiro EP gravado num estúdio, confessa o cantautor canadiano entre os desabafos recorrentes nas suas redessociais. Felizmente, não foi um esforço inglório: "BRATTY", auto-editado há poucas semanas, é um conjunto de canções mais seguro e versátil do que o já de si promissor "night person demo tapes" (2020), EP gravado no quarto e que o artista de Toronto recomenda para madrugadas solitárias às quatro da manhã.
A nova colheita não ficará confinada a um horário tão específico nem a uma audição necessariamente caseira, ao apostar num registo menos lo-fi e acústico (até por contar com dois músicos que se ocupam do baixo, bateria, guitarra e sintetizadores) e ao ser conduzida por uma voz que já não se limita ao sussurro. A faixa-título é um bom exemplo do abanão sonoro num alinhamento ainda assim maioritariamente intimista e contido, amparado num timbre caloroso e em relatos autobiográficos.
"BRATTY" traz sete histórias (e dois interlúdios) nas quais o seu autor se debruça sobre a solidão, a vergonha, a cumplicidade ou a afirmação enquanto equilibra melancolia e alguma ironia, quase sempre a partir dos (des)encantos das relações amorosas - seja o de uma noite de sexo casual, em "Late Night Caller" ("I’m not a hotline, I am something/ Not sure you know me as something other"), o adeus sem arrependimentos a um ex, em "Bratty" ("I found you weak, not traumatizing", "Better alone/ So get drunk on your tears"), ou o encontro com um homem mais velho, em "Terry's Car", um retrato especialmente forte e desarmante ("He thinks I'm some fragile young thing/ He should probably know I could ruin his family").
Tal como os também recentes MAN ON MAN ou o português Vaiapraia, BRENDAN HENDRY é mais uma voz masculina LGBTQI+ que parte de uma postura do it yourself cruzada com heranças do rock alternativo (e alguns ecos folk ou country), embora as vozes que mais admira até sejam quase todas femininas, de Amy Winehouse a Joni Mitchell, de Liz Phair a Lana Del Rey (de quem fez uma versão de "Mariners Apartment Complex" no EP caseiro).
A atitude desenrascada mantém-se nos videoclips, todos dirigidos pelo canadiano e a maioria tão artesanais como os primeiros temas (a excepção é o de "Terry's Car", que já contou com uma equipa de realização, direcção de fotografia, guarda-roupa e produção). Vale a pena espreitá-los e juntar "BRATTY" à lista de discos de cabeceira da temporada.
Inspirando-se nos mitos e folclore africanos, "LEOPARDO NEGRO, LOBO VERMELHO" apresenta um arrojado mundo novo que alguns comparam aos de Tolkien ou George R. R. Martin. Mas este é um universo de fantasia à parte, e particularmente visceral, com o qual o jamaicano Marlon James inaugura em alta uma trilogia literária.
"A criança está morta. Não há mais nada para saber. Ouço dizer que no Sul há uma rainha que mata quem lhe traz más notícias. Por isso, quando a informo da morte do rapaz, estarei a assinar a minha sentença de morte?"
Começa assim a odisseia do Batedor, personagem principal e narrador da primeira parte da Trilogia Estrela Negra, a mais recente aventura literária de Marlon James, editada em 2019. O autor não se coíbe de oferecer de bandeja o desenlace da jornada que está no centro do enredo, o que noutros livros poderia frustrar as expectativas do leitor. Mas se há casos em que o que conta não é tanto o destino mas a viagem, este é certamente um deles.
Narrada por um mercenário que não será um guia especialmente confiável, "LEOPARDO NEGRO, LOBO VERMELHO" tem raízes na tradição oral africana pré-colonial e cruza mitos desse continente com códigos (devidamente subvertidos) de sagas fantásticas, levando a obra do escritor radicado nos EUA para os da literatura de género depois de romances aclamados como "Breve História de Sete Assassinatos" de 2016 (vencedor do Man Booker Prize e do American Book Award, foi o primeiro livro do autor editado em Portugal).
Se nesse antecessor James se debruçava sobre a morte de Bob Marley, desta vez volta a centrar-se na experiência da comunidade negra ao recuar milénios para mergulhar em questões com ressonância no presente. Apesar de não faltarem criaturas extraordinárias (aventureiros transmorfos, feiticeiros, gigantes, vampiros, demónios, macacos canibais ou um búfalo tão teimoso como perspicaz), o entusiasmo pelo fantástico surge associado a um olhar sobre o poder, a família, a sexualidade ou a religião, com farpas bem apontadas à misoginia ou à homofobia. Não é uma conjugação inesperada num escritor que diz ter-se inspirado em nomes como Salman Rushdie para uma escrita simultaneamente pessoal e política. O autor de "Versículos Satânicos" está, aliás, entre os admiradores de "LEOPARDO NEGRO, LOBO VERMELHO" e também entre os que o comparam aos universos de Tolkien, de George R. R. Martin e até da Marvel, via "Black Panther".
Até certo ponto, as comparações percebem-se: o nível de detalhe na construção e apresentação deste universo não fica aquém do de "O Senhor dos Anéis" (nem sequer faltam mapas para ilustrar o itinerário), as doses de crueza e violência talvez até superem as de "A Guerra dos Tronos" - James não tem medo de ser excessivo, ou mesmo escatológico, ao sugerir ou relatar episódios de agressões, torturas, mutilações, violações, assassinatos, violações, escravidão ou canibalismo.
Imagem não oficial criada pela artista gráfica e ilustradora Jemina Malkki
A visão do jamaicano, no entanto, é bem menos maniqueísta do que a dessas sagas, embora Martin já recusasse um mundo a preto e branco. Aqui não há heróis impolutos, desde logo porque o leitor é conduzido por um narrador e protagonista cáustico, o que até poderá limitar a sua empatia nas largas primeiras páginas - o livro tem mais de 600 na edição portuguesa.
Mas aos poucos, as razões do Batedor, um mercenário céptico e solitário de olfacto apurado, vão sendo esgravatadas à medida que a sua muralha emocional dá algumas tréguas. Apesar da sordidez que marca a luta entre reinos (o do norte e o do sul) e a perseguição desenfreada a uma criança desaparecida que pode ser o herdeiro legítimo, esta também é uma história de amor. E de amor (e sexo) entre homens negros, o que não é um pormenor vinda de um escritor homossexual que abandonou a Jamaica porque podia ser morto por isso - um caso em que o pessoal é inseparável do político, lá está, e a dar conta que a brutalidade real ultrapassa a de muita ficção.
Ao longo de um desdobramento narrativo labiríntico, com dezenas de portas mágicas, uma cidade horizontal e alada ou um ataque de hienas gráfico e traumático, "LEOPARDO NEGRO, LOBO VERMELHO" triunfa tanto nesses exemplos de imaginação fervilhante como quando explora as ideias de pertença, diferença, identidade, verdade ou propósito a partir das experiências do protagonista. E é por isso que o relato do Batedor vai do suspense ao delírio, do inesperadamente caloroso à angústia da recta final, mérito de um escritor que se distingue nas descrições vívidas e nos diálogos afiados (que não abdicam do humor entre a selvajaria).
As figuras que se cruzam no percurso do mercenário são outro ponto forte, do Leopardo com quem partilha o título do livro (capaz de se transformar em homem ou felino) a Mossi (talvez a personagem mais nobre, uma das âncoras emocionais da saga), passando por um grupo de crianças orfãs com capacidades especiais (qualquer aproximação aos X-Men não será pura coincidência, já que James acompanha a BD dos super-heróis mutantes da Marvel) e toda a galeria de antagonistas. Infelizmente para elas (e em alguns casos, para o leitor), nem todas chegam ao fim do livro para contar a história, ao contrário do protagonista (não é um spoiler, James é o primeiro a colocar as cartas na mesa).
Ainda assim, esta história vai voltar a ser contada: os dois volumes seguintes da trilogia prometem revisitar os acontecimentos pela voz de outros narradores, resultado da influência da série "The Affair", do Showtime, que também apostou nesse dispositivo narrativo (herdado do clássico "Rashomon", de Akira Kurosawa). Antes disso, talvez seja a vez de "LEOPARDO NEGRO, LOBO VERMELHO" chegar ao pequeno ecrã, tendo em conta que Michael B. Jordan já comprou os direitos televisivos. Por agora, ficam as imagens mentais que vão surgindo a cada virar de página deste épico brilhante e altamente imersivo.