Acerto de contas com o 11 de Setembro
Ainda há formas inesperadas de olhar para os traumas do 11 de Setembro. "VALOR DA VIDA", de Sara Colangelo, junta-se à lista de filmes meritórios inspirados pelos atentados de 2001 e é das propostas em cartaz que valem o preço do bilhete.
20 anos depois dos eventos trágicos no World Trade Center, que deixaram Nova Iorque e o mundo de luto, as perdas do 11 de Setembro continuam a dar o mote a alguma ficção. Um dos exemplos mais recentes chegou por estes dias às salas nacionais depois de se ter estreado no Festival de Sundance, em 2020, e de ter sido comprado pela Netflix, embora não esteja disponível no catálogo português da plataforma.
Em vez de se focar nos ataques terroristas ou nos momentos que os antecederam, já amplamente retratados noutras ficções, "VALOR DA VIDA" centra-se nas suas consequências, sobretudo na forma como o Governo norte-americano compensou os familiares das vítimas. Baseando-se em figuras reais, o filme acompanha em especial a figura-chave nesse processo: Kenneth Feinberg (Michael Keaton), o advogado que supervisionou o fundo responsável pelas indemnizações.
A julgar pelo que "VALOR DA VIDA" dá a ver, esse foi um processo conturbado, uma vez que a decisão sobre o valor monetário a atribuir às vítimas esteve longe de ser pacífica. A equipa de Feinberg desenvolveu uma fórmula baseada no estatuto financeiro de cada pessoa que perdeu a vida, mas as queixas de um modelo "desumanizado" não demoram a fazer-se ouvir. E quando se junta à discussão um homem cuja mulher morreu nos atentados - Charles Wolf (Stanley Tucci), criador de um grupo que defende um novo processo -, o filme alarga o relato do peso do trauma a uma proposta de reflexão ética.
Se o ponto de partida parece apontar para um duelo em modo prós-e-contras dominado pelo maniqueísmo, Sara Colangelo e o argumentista Max Borenstein evitam simplificações e demonizações, num drama de câmara tão metódico como humanista. O arco de Feinberg destaca-se como centro da narrativa - e a dupla não recusa focar quer as suas razões, quer as limitações da sua abordagem -, mas o olhar paciente e compassivo dá tempo e espaço aos dilemas dos colegas do advogado, às vítimas com quem se cruza e ainda aos que o confrontam ou assediam moralmente.
Particularmente interessante, entre os casos trágicos que surgem na lista de compensações, é o de um homem cujo companheiro foi morto nos ataques, mas cuja cuja indemnização será atribuída aos pais deste (com os quais tinha cortado relações por não aceitarem a sua homossexualidade), de acordo com o modelo "matemático" e pragmático defendido pelo protagonista. E é por detalhes como este, ou como o arco de uma viúva a lidar com a morte do pai dos seus filhos, que "VALOR DA VIDA" se vai desviando, não por completo embora o suficiente, de um esquematismo que o poderia limitar a uma homenagem bem-intencionada mas sem espessura dramática nem fulgor cinematográfico. Mérito de Colangelo, realizadora que já se tinha revelado atenta às vicissitudes humanas em "A Educadora de Infância", mesmo que o novo filme nunca experimente o desvario emocional de algumas cenas desse antecessor. Nem precisa, já que a faceta compassiva, contida e respeitosa que adopta aqui serve bem esta história.
Colangelo também dispensa qualquer espectacularidade na revisitação dos atentados, limitando-se a captar os eventos do dia fatídico através da reacção do protagonista, numa sequência que alia sobriedade e intensidade estética. Keaton mostra-se à altura desse registo justo, na pele de um homem que vai aprendendo a colocar-se no lugar do outro, o que aliás pode dizer-se de todo o elenco, do "antagonista" Stanley Tucci à aliada Amy Ryan. Drama de valor, este, e bem mais interessante do que grande parte da produção norte-americana que vai chegando às salas.
3/5