Um brinde às memórias (e a outras histórias)
Dois dramas, um argentino e um norte-americano, estiveram entre os destaques da secção competitiva de longas-metragens da mais recente edição do QUEER LISBOA. Um acabou por ser premiado no festival, o outro vale igualmente a descoberta.
"FIN DE SIGLO", de Lucio Castro: Algumas das melhores surpresas do Queer Lisboa ao longo dos anos têm chegado do cinema sul-americano, em particular do argentino. E se um realizador como Marco Berger já se tornou um habitué no festival (através de apostas como "Plan B" ou "El Cazador"), o seu conterrâneo Lucio Castro destaca-se como uma das revelações da edição de 2021, também ele a deixar um retrato enigmático, lânguido e meditativo sobre relacionamentos amorosos no masculino.
A sua primeira longa-metragem, depois de duas curtas, arranca com um (aparentemente) breve encontro entre dois homens em Barcelona, em tom realista, e vai passando de um olhar sobre a solidão numa grande cidade a um exercício (às vezes, de estilo) que revela ser mais do que uma resposta gay à trilogia "Before", de Richard Linklater (com o qual tem sido comparado).
Não faltam opções curiosas: a primeira frase só é ouvida mais de 15 minutos depois de o filme arrancar, mas até lá Castro assegura ser capaz de dizer tudo apenas com as imagens, valendo-se de um sentido de ritmo e composição admiráveis numa primeira longa - e a tornarem esta visita a Barcelona numa experiência envolvente. Por outro lado, grande parte do que se segue assenta nos diálogos da dupla protagonista, e aí o filme chega a lembrar "Weekend", de Andrew Haigh (ou o episódio "Looking for the Future", um dos mais icónicos de "Looking", série criada pelo britânico). Mas propõe um olhar formalmente mais ambicioso, ao cruzar passado, presente e futuro (?) num drama elíptico e invulgar, tão interessado no peso da memória como no que ficou por viver. A viagem temporal obriga a alguma suspensão da descrença, mas também afasta esta história (sobretudo pelo modo como é contada) de muitos relatos boy meets boy que já passaram pelo festival.
3/5
"MINYAN", de Eric Steel: Vencedor do prémio de melhor longa-metragem do Queer Lisboa, este drama ambientado na Nova Iorque dos anos 80 foi dos mais recomendáveis da selecção de 2021 e prova que a entrada na idade adulta continua a ser um tema fértil.
Estreia na ficção de um realizador com experiência no documentário, é a história da auto-descoberta de um adolescente judeu, de ascendência russa, que se debate com os conflitos entre a sua (homo)sexualidade e a religião numa comunidade conservadora. Mas os dilemas da sua jornada iniciática acabam por ir ficando para segundo plano quando conhece dois homens idosos, também judeus, com uma relação não assumida, que o levam a redefinir prioridades e a decidir o seu lugar no mundo - ou nos mundos aparentemente inconciliáveis que vai conhecendo no seu bairro, da sinagoga a bares gay.
Num filme que finta alguns lugares comuns de narrativas coming of age (e coming out), Steel evita tanto o relato inspirador como a denúncia religiosa, sem deixar de fazer uma ode melancólica à resistência e resiliência de duas comunidades. E embora vão ficando algumas pontas soltas pelo caminho, rumo a um final anticlimático, o estudo de personagem mantém-se complexo e estimulante, enriquecido pelo desempenho seguro de Riley Barnes, por uma banda sonora fiel ao turbilhão emocional (entre uma partitura de sugestões jazz/noise e hinos synth-pop) ou através do realismo das figuras e espaços (que talvez deva alguma coisa à escola documental do norte-americano). Mereceu o prémio, mas também merecia ser visto num circuito menos restrito (como outros do festival, aliás...).
3/5