A feira das vaidades nunca passa de moda
Nomeado para 15 Césares, um recorde nos maiores prémios do cinema francês, "ILUSÕES PERDIDAS" injecta nova vida nos moldes do filme de época ao adaptar o clássico homónimo da "Comédia Humana" de Honoré de Balzac. Entre o gosto romanesco e o gozo irónico, Xavier Giannoli diverte-se (e diverte-nos) com um retrato social que está longe de se limitar ao de Paris do século XIX.
A certa altura do novo filme do realizador de "Marguerite" (2015), duas personagens falam sobre como as visões de uma obra artística podem ser maleáveis, mesmo quando partem do mesmo olhar crítico. Se um romance foi inteligente, diz-se que é pretensioso. Se for clássico, pode ser rotulado de conservador. Caso seja longo, arrisca-se a não ter foco. Se for consistente, é previsível. E poderíamos continuar.
Claro que essa abordagem também será válida para a adaptação de uma obra literária de Balzac para o grande ecrã, e Xavier Giannoli sabe disso - tal como o sabem Jacques Fieschi e Yves Stavrides, que ajudaram o francês a trabalhar o argumento. Mas mesmo que "ILUSÕES PERDIDAS" tenha, pontualmente, qualquer coisa de pretensioso, conservador, disperso e previsível, para nos ficarmos só pelos adjectivos mencionados acima, no final das suas 2h30 as qualidades ofuscam (e muito) as limitações.
Sem nunca tentar uma ruptura a nível formal ou narrativo, este mergulho na sociedade francesa de meados do século XIX, e em particular nos ambientes da aristocracia e da burguesia (e na sua disputa), sabe sempre fintar a modorra que acaba por se instalar em demasiados filmes de época ou o lado ilustrativo de muitas adaptações literárias. E é um feito que o consiga enquanto não se inibe de demorar o tempo de que precisa para contar a sua história, intrincada q.b. mas nunca confusa, ao seguir o trajecto de um jovem aspirante a poeta que parte da calmaria da França rural para uma Paris fervilhante.
Relato agridoce de iniciação emocional, profissional e social, coloca em cena um jogo de forças entre o idealismo que começa por mover o protagonista e o cinismo que se vai impondo numa intriga palaciana onde, às tantas, já ninguém é inocente. E onde tudo é consumo, da arte aos olhares críticos (comprados a peso de ouro) que se debruçam sobre ela através de jornais devorados pelas classes "esclarecidas".
"ILUSÕES PERDIDAS" faz jus ao título com um fresco irónico que tanto denuncia, com um esgar perverso, uma estratificação de classes viciada (que não dá verdadeiras hipóteses à ascensão social) como a manipulação dos media enquanto processo normalizador de uma lógica mercantilista. E enquanto vai movendo as suas personagens num baliado entre o ser e o parecer, obriga o espectador a questionar de que mundo está afinal a falar: se o de ontem, se (ou também) o de hoje. Não que lhe deixe grandes dúvidas: nem sequer faltam "fake news" neste contexto, desfazendo as ilusões de quem as tinha como criação do século XXI.
Apesar de abrilhantado por uma recriação de época esmerada, sem reparos na direcção artística ou na fotografia, o filme não tem como motor uma estética opulenta. Aqui é a palavra que conduz quase tudo (como acontecia no também recente "As Coisas que Dizemos, as Coisas que Fazemos", curiosamente outro favorito dos Césares), desde logo pela presença de uma narração em off omnisciente, mais oportuna e incisiva do que intrusiva - uma raridade, portanto, sobretudo quando é tão dominante. E se é verdade que esse recurso e os muitos diálogos (alguns com duelos a fazer as vezes de cenas de acção) exigem a atenção máxima do espectador, Giannoli nunca cede à sisudez, mantendo um tom espevitado e uma energia contagiante.
Cereja em cima do bolo, a direcção de actores não falha uma nota. Benjamin Voisin, actor que já tinha deixado boas impressões em "Verão de 85", de François Ozon, impõe-se como novo valor seguro do cinema francês, ao dar corpo às mudanças graduais e credíveis do protagonista, do deslumbre à tentação da corrupção. Mas este é um filme coral, a juntar revelações e veteranos.
Vincent Lacoste surge em modo tão áspero como efusivo e confirma que é outro nome a seguir (depois de filmes como "Verdade e Consequência" ou "Agradar, Amar e Correr Depressa"), Salomé Dewaels tem o desempenho mais comovente (e mostra que o argumento sabe acalmar o lado cáustico), Xavier Dolan traz uma gravidade que poucos esperariam (e é muito bem-vinda). Já a contenção da baronesa de Cécile de France, mulher incapaz de sair de um cativeiro de luxo, contrasta com a aura deliciosamente viperina de Jeanne Balibar, uma aristocrata perita em manobras de bastidores. E Gérard Depardieu garante autoridade a um editor muito particular: não sabe ler nem escrever, o que não o impede de ser o mais influente de Paris no seu métier. Óptimo elenco, decisivo para um filme à altura e com savoir faire para dar e vender - ou só mesmo vender, caso se mantenha fiel ao argumento...
4/5