Saltar para: Posts [1], Pesquisa [2]

gonn1000

Muitos discos, alguns filmes, séries e livros de vez em quando, concertos quando sobra tempo

Muitos discos, alguns filmes, séries e livros de vez em quando, concertos quando sobra tempo

Canção de fé e devoção (e raiva e desilusão)

Fontaines D.C..jpg

De esperanças do rock (ou, sendo mais específicos, do ressurgimento do pós-punk) está a nova cena musical britânica cheia, mas há casos em que vale a pena ter fé. Nos últimos anos, os irlandeses FONTAINES D.C. foram especialmente prolíficos ao se afirmarem com dois álbuns - "Dogrel" (2019) e "A Hero's Death" (2020) - e já não falta muito para podermos ouvir o terceiro.

Se estiver à altura dos singles, "Skinty Fia", com lançamento agendado para 22 de Abril, pode muito bem ser o mais conseguido do quinteto até agora. "Jackie Down the Line" já o tinha sugerido, há poucas semanas, ao levar a música do grupo para outras direcções, sobretudo através de uma sensibilidade (brit)pop a lembrar os Oasis num dia inspirado. E a capacidade de surpreender mantém-se no segundo avanço, o recém-estreado "I LOVE YOU".

Skinty Fia.jpg

Canção grandiosa de estrutura invulgar, parece encaminhar-se para uma balada obsessiva q.b., de contornos new wave e dream pop, mas muda drasticamente para um crescendo épico assente no disparo de palavras de Grian Chatten, numa das suas interpretações mais intensas (e que não dispensa o sotaque carregado que o ajudou a distinguir-se).

Descrito pela banda como o seu primeiro tema declaradamente político, tem um dos títulos mais gastos da história da pop mas deixa um retrato personalizado que junta paixão, orgulho, desilusão e raiva a partir da perspectiva de um irlandês a viver fora do seu país.

O videoclip dá espaço ao peso da palavra e ao frenesim instrumental (cortesia da produção do requisitado Dan Carey) ao dispensar extravagâncias visuais: opta pelo recolhimento de uma igreja, ocupada apenas pelo vocalista à luz de dezenas de velas. Tenhamos fé no álbum que aí vem, pois então:

A pior pessoa do Twitter

De jovem escritor aplaudido a inimigo público n.º 1 em poucas horas: assim é o percurso do protagonista de "ARTHUR RAMBO", o novo filme de Laurent Cantet. Um retrato ambíguo dos ídolos e ódios das redes sociais cruzado com os fantasmas do ressentimento e da xenofobia.

Artthur Rambo 2.jpg

Laurent Cantet é sempre interessante, sobretudo quando filma dentro de portas e olha para as tensões multiculturais da sociedade francesa. No drama anterior, "O Workshop" (2017), regressava ao universo escolar no qual deixou um marco com "A Turma" (2008), ainda a sua obra de referência. Mas se aí acompanhava a aproximação de um adolescente a ideias da extrema-direita, desta vez segue um jovem parisiense de ascendência argelina que se tornou um fenómeno literário, elogiado pelas elites intectuais e impulsionado pelos media pela forma sensível e perspicaz como captou a experiência da imigração no romance de estreia.

Mas quando tudo parece correr pelo melhor a Karim D, as redes sociais puxam-lhe o tapete debaixo dos pés quando revelam um passado vivido através de um alter ego virtual, Arthur Rambo. Personagem incendiária, não deixou pedra sobre pedra nas provocações (e insultos) disparados numa conta do Twitter muito popular, face à qual a capa do humor negro ou politicamente incorrecto não é suficiente para justificar a overdose de racismo, homofobia ou sexismo - e com os desabafos antissemitas a caírem particularmente mal junto da opinião pública.

Arthur Rambo.jpg

Parece familiar? Talvez porque não faltem casos comparáveis fora da ficção, desde logo o de uma figura do cinema como James Gunn. Mas o filme parte de outra história verídica, a do escritor e jornalista Mehdi Meklat, que viveu um drama semelhante ao ser acossado pela sociedade francesa em 2017.

Através de uma narrativa escorreita e envolvente, que aceita condimentos do thriller e ideias visuais da linguagem online, "ARTHUR RAMBO" documenta o triunfo repentino e a queda inesperada de uma figura que tenta reagir ao cancelamento mediático. Ou mesmo ao cancelamento social, à medida que as portas se vão fechando tanto na sua vida profissional como na pessoal.

Cantet é óptimo a desenhar e a contrastar os vários círculos em que Karim se move, da elite parisiense aos bairros de imigrantes dos subúrbios, dos grupos de colegas e amigos à companheira e à família. E Rabah Nait Oufella encarna com convicção um protagonista tão carismático como vulnerável e esquivo, que o argumento nunca reduz a herói, anti-herói ou vilão, deixando os juízos a cargo do espectador.

Arthur Rambo 3.jpg

Todo o elenco é, de resto (e como sempre na obra do realizador), bastante coeso. Só que depois de "O Workshop" ter deixado alguma frustração no terceiro acto, "ARTHUR RAMBO" também fica aquém do potencial por... quase nem chegar a ter um terceiro acto.

É verdade que há uma conversa decisiva nos últimos minutos, talvez a mais intensa e esclarecedora, que obriga o protagonista a reavaliar (mais uma vez) a sua postura e sobretudo a sua herança. Mas se há filmes que se prolongam quando já disseram e repetiram tudo o que tinham para dizer, este é dos que talvez ganhassem com mais meia-hora e com os capítulos seguintes deste estudo de personagem. Como está, acaba por ter tanto de entusiasmante como de anticlimático, por muito bom que seja acolher um novo relato de Cantet.

3/5