O pós-punk não só não morreu como continua a inspirar uma nova vaga de artistas maioritariamente britânicos. E como em todas as tendências que recuperam movimentos, há quem se fique pela vénia e quem procure trilhar caminhos menos habituais. SINEAD O'BRIEN parece pertencer ao segundo caso.
Através do EP "Drowning in Blessings" (2020) e de várias canções reveladas nos últimos anos, esta irlandesa tem-se feito ouvir a partir de Londres, depois de ter estudado design de moda em Paris e trabalhado para casas como a Dior ou Vivienne Westwood. Mas a paixão antiga pela poesia e pela música, e sobretudo pela aliança das duas, acabou por falar mais alto, encorajando uma carreira que se tornou mais séria quando formou uma banda com o guitarrista Julian Hanson e o baterista Oscar Roberts.
Aos poucos, o sólido corpo de canções foi desviando este caminho de uma esperança para uma certeza, estatuto que o álbum de estreia tratará de confirmar. E é fácil acreditar que sim quando cinco temas (ou seja, quase metade do alinhamento) já são conhecidos e mantêm os sinais de personalidade sugeridos por singles dos primeiros dias como "Roman Ruins" ou o especialmente convincente "Kid Stuff".
"Time Bend and Break the Bower", longa-duração aguardado com alguma expectativa, é editado esta sexta-feira, 10 de Junho, e contou com avanços auspiciosos em "Girlkind", "Multitudes", "There Are Good Times Coming" e "Holy Country". O mais recente, "LIKE CULTURE", é bem representativo de uma linguagem alimentada por tensões de guitarra, percussão e sintetizadores, palavras ora ditas ora cantadas (muitas vezes sem fronteira nítida) e uma voz com um timbre, teatralidade e entoações que talvez se estranhem antes de se irem entranhando. Nesse embalo sonoro e lírico, tudo aponta para mais uma força feminina carismática do novo pós-punk, a juntar a Dana Margolin (dos Porridge Radio) ou Florence Shaw (dos Dry Cleaning).
Ocasionalmente, a combinação de eloquência e urgência (além, claro, do sotaque carregado) lembra os conterrâneos Fontaines D.C., não por acaso outro nome que tem trabalhado com Dan Carey, produtor do disco (e a quem as Wet Leg, Goat Girl ou Geese também podem agradecer). Nova escola irlandesa à vista? Seja como for, há pelo menos quem tenha a lição bem estudada e também é capaz de improvisar...
"Sakidila", o primeiro álbum de PONGO, deu o mote para a noite desta quinta-feira, 2 de Junho, na sala lisboeta B.Leza. Entre canções novas e recuos aos EPs, a luso-angolana propôs uma celebração da vida enquanto deixou um testemunho caloroso de vitalidade musical.
"Dez anos depois, eu comando", assegurou Engrácia Domingues, mais conhecida como Pongo, em "Começa", na noite em que o seu primeiro álbum subiu ao palco da sala do Cais do Sodré dedicada a sonoridades africanas.
E na verdade, até já passaram mais de dez anos desde que a cantora se destacou como uma das vozes dos Buraka Som Sistema - então enquanto Pongolove -, eternizada na canção-furacão "Kalemba (Wegue Wegue)" (lançada em 2008), provavelmente o maior hino do colectivo - e do qual a luso-angolana actualmente a residir em França foi compositora, ainda na adolescência.
O caminho já vai longo, mas só agora chegou à marca do primeiro longa-duração, editado em Abril. O que não quer dizer que não tenha sido produtivo: antes do álbum, PONGO já tinha mostrado ao que vinha num percurso a solo do qual nasceram dois óptimos e muito refrescantes EPs, "Baia" (2019) e "UWA" (2020), nos quais revelou vontade de explorar outros mundos partindo das possibilidades do kuduro.
Esse eclectismo também domina o alinhamento de "Sakidila" - que significa "obrigado" em kimbundu, uma das línguas faladas em Angola -, registo que talvez não brilhe de forma tão constante como os antecessores mas que deixa claro quem está no comando.
"Quem manda no mic"? É a PONGO", repetiu a anfitriã no tema inaugural do concerto, o segundo em Lisboa este ano - depois da passagem pelo Pavilhão Carlos Lopes, no festival Sónar, em Abril - e o último em Portugal antes de uma digressão que vai da Europa ao Canadá. Afinal, foi fora de portas que esta música começou por ser acolhida de forma mais evidente, de distinções no New Musical Express ou da BBC ao convite mais recente da plataforma COLORS, passando pela colaboração com muitos produtores franceses (que se mantém no álbum).
A casa praticamente cheia na noite de quinta-feira talvez tenha beneficiado do efeito de "DÉGRÁ.DÊ", o tema de DJ Marfox que Pongo interpretou ao lado de Tristany no Festival da Canção deste ano. Curiosamente, foi um dos que ficou de fora do alinhamento do concerto, mas poucos espectadores terão reclamado quando não faltaram trunfos ao longo de pouco mais de uma hora intensa e versátil.
Apesar de "Sakidila" ter sido o ponto de partida, houve espaço para grande parte das canções dos EPs, da pujança de "Baia", aos primeiros minutos, ao final apoteótico a cargo de "UWA", com a cantora no meio do público e a propor uma dance battle que elevou a euforia já de si notória e levou a uma propagação de gritos e braços no ar.
Comunicativa e espirituosa, fez jus ao título do disco. Os agradecimentos foram recorrentes, o elogio da música enquanto elo comunitário e celebração da vida também. E se há música celebratória, perfeita para dar as boas-vindas ao Verão, é a de PONGO: das pistas de kuduro progressivo a contaminações da house ou do eurodance, do afrofunk ou do afrobeat, a actuação guiou-se por um disparo de adrenalina que terá poucos parentes próximos por cá - tirando a energia dos também luso-angolanos Throes + The Shine, que partilha algumas destas coordenadas (e que também já dominou o palco do B.Leza).
"Tu sabes que és a diva. Não deixes ninguém duvidar", assinalou em "Hey Linda", uma das novas canções mais contagiantes e exemplo do empoderamento e afirmação que atravessa as suas letras. Outros relatos, numa vertente menos agitada, incluíram desilusões amorosas ou "dates que não deviam ter sido mais do que isso", descreveu. E desses, "Kuzola" sobressaiu enquanto episódio particularmente memorável, menos acelerado mas sem perder intensidade. É uma das suas grandes canções, capaz de aliar sensibilidade pop, calor africano, elementos electrónicos ou reminiscências pós-punk (guitarras com ecos de uns The xx incluídas, sobretudo no formato ao vivo). Percebe-se que tenha sido a única a transitar do alinhamento de um EP para o álbum (ainda que "Makamba" fosse igualmente merecedora, e é pena não ter sido revisitada em palco).
Ao lado de dois músicos (um na bateria, outro ocupando-se das programações ou da guitarra) e pontualmente acompanhada por duas bailarinas, PONGO disparou ritmo sem esquecer a melodia, transitando entre uma postura assertiva e momentos de vulnerabilidade. "Tambulaya" acendeu um rastilho percussivo com palavras de ordem à altura, "Canto" juntou português e castelhano numa ode à música (defendida de forma tão orelhuda como comovente), "Doudou" convidou para um baile de travo kizomba, "Kassussa" foi um carrossel electropop de apelo tribal, "Amaduro" soou ainda mais musculada e demolidora do que em disco, já em cima raver.
"Wegue Wegue" não foi esquecida (até porque surge numa nova versão em "Sakidila"), despertando um frenesim inevitável, mas não se pode dizer que tenha ofuscado muitos outros capítulos do concerto. Já no final do encore ouviram-se ainda alguns segundos de "Bica Bidon", entoada a cappella ao lado de Titica, convidada improvisada quando o público insistia em pedir mais - a angolana também canta o tema no álbum, com uma melodia inspirada numa canção infantil. "Com alegria eu trovo/ Melodias componho", diz PONGO nessa canção. E enquanto continuar a fazê-lo com a entrega de actuações como esta, entre música tão vibrante e fluída, o agradecimento será todo nosso.