A tradição já não é o que era... e o cinema (queer) agradece
A relação difícil entre modernidade (ou liberdade) e tradição dá o mote a dois dos filmes premiados no QUEER LISBOA 26, que se despediu há poucos dias do Cinema São Jorge e da Cinemateca. E tanto um como o outro mereciam ter vida longa em mais salas nacionais...
"JOYLAND", de Saim Sadiq: Infelizmente para as suas personagens, o título da longa-metragem vencedora da Menção Especial do júri e do Prémio do Público do Queer Lisboa 26 é irónico. A alegria está longe de ser a sensação dominante do quotidiano da família paquistanesa no centro deste drama, o primeiro de um realizador conterrâneo que tem estudado Cinema nos EUA e cujo currículo conta com várias curtas. Uma delas, "Darling" (2019), premiada no Festival de Veneza, inspirou a história de um homem da classe média de Lahore que tenta mostrar estar à altura de uma tradição patriarcal rígida, embora acabe por se envolver com uma mulher trans quando encontra trabalho num clube nocturno.
Mas se "JOYLAND" pode parecer, à primeira vista, apenas mais uma história de amor queer, ainda que ambientada num contexto geográfico, social e religioso pouco associado a esses retratos, vai fintando expectativas e estereótipos enquanto também deixa um olhar poderoso, subtilmente transgressor e sempre compassivo sobre convenções de género.
Revelando uma segurança impressionante para uma primeira longa-metragem, percebe-se porque é que arrecadou o Prémio do Júri da secção Um Certain Regard e a Queer Palm em Cannes, este ano. Do argumento muito bem carpinteirado a quatro mãos, pelo realizador e Maggie Briggs, à claustrofobia reforçada por um ecrã 4:3 e por uma câmara atenta às especificidades dos corpos e dos espaços, passando pela belíssima direcção de fotografia de Joe Saade (cujo esplendor visual tanto tira partido de luzes de telemóvel numa sequência de dança como dos néons que iluminam um quarto ou de uma noite no parque de diversões que dá título ao filme), este é um triunfo em várias vertentes.
Essa consistência também se deve ao equilíbrio de melodrama e de alguns momentos de descompressão (cortesia do humor, do desejo ou até da euforia numa montanha-russa) e, claro, a um elenco decisivo para moldar figuras de corpo inteiro, tão empáticas como contraditórias (e nenhuma recolhe a simpatia ou antipatia total do espectador, mérito de uma trama que poderia limitar-se à denúncia engajada de um sistema repressivo). Rasti Farooq, em particular, é extraordinária ao encarnar uma mulher que insiste em ser dona do seu destino, custe o que custar, e em boa parte responsável pelo efeito agridoce (o título engana, lá está) de um dos grandes filmes do ano.
4/5
"WET SAND", de Elene Naveriani: "We believe in love/ God save us now", canta Michael Gira em "Our Love Lies", clássico dos Swans recuperado logo no início deste drama georgiano, vencedor do prémio de Melhor Filme no Queer Lisboa 26.
A escolha da canção não é acidental, como de resto não é nenhum elemento desta segunda e muito meticulosa longa-metragem da realizadora de "I Am Truly a Drop of Sun on Earth" (2017). Amar pode implicar morrer (ou ser morto) em comunidades opressivas e declaradamente misóginas e homofóbicas como a região na costa do Mar Negro na qual decorre este estudo de personagens intrigante, e algumas figuram locais descobrem-no da pior maneira.
Ao partir da investigação de um (aparente) suicídio feita pela jovem neta da vítima, estranha numa terra estranha, Naveriani propõe um olhar sobre a identidade, a diferença, a intolerância e o silenciamento assente num realismo seco, imersivo e atmosférico. A realizadora mantém um percurso paralelo como artista plástica e isso talvez ajude a explicar o formalismo que também emana da conjugação de planos fixos rigorosos, muitas vezes de conjunto, com uma sonoplastia que torna a presença do mar, do vento ou da chuva em muito mais do que mero adereço.
Filme paciente enquanto desvenda o novelo de segredos, omissões e mentiras que envolve a morte na origem de um conflito moral (e a certa altura físico), "WET SAND" não dispensa acessos de humor - mesmo que cortantes, às vezes a lembrar a escola de Aki Kaurismäki - nem de romantismo - mesmo que mórbido q.b., e aí dá-se bem com a música cavernosa dos supracitados Swans ou dos She Past Away. A comprová-lo estão duas cenas de beijos (não por acaso, entre pessoas do mesmo sexo), rimas inspiradas de um drama ao qual não faltam singularidades, caso do caminho acidentado entre a mesquinhez e a esperança ou do ressentimento ao empoderamento.
3,5/5