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Muitos discos, alguns filmes, séries e livros de vez em quando, concertos quando sobra tempo

Muitos discos, alguns filmes, séries e livros de vez em quando, concertos quando sobra tempo

Mãe e filha

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Mais de 15 anos depois de canções como "Je veux te voir" ou "A cause des garçons" os terem reveado entre as promessas da pop francesa, os YELLE iniciam uma nova fase com um dos seus singles mais sóbrios.

"TOP FAN", a primeira canção revelada pela dupla de Julie Budet e Jean-François Perrier desde o quarto álbum, "L'ère du verseau" (2020), parte directamente da experiência da maternidade vivida pela vocalista desde o ano passado e é dedicada à sua filha. Os sintetizadores continuam presentes, mas amenizados num tema que está muito longe de uma bomba para as pistas - embora essas possam sempre chegar com as remisturas.

Com o quinto álbum ainda por confirmar, o duo regressa para já aos palcos - através de uma digressão americana a partir de Fevereiro - e para já podemos ver Budet no novo videoclip. Realizado por Jean-François Perrier e Nicolas Pradeau, é um exercício minimalista que combina estéticas e termina com um encontro entre mãe e filha:

Teremos sempre Paris (mesmo que os anos 80 já não voltem)

Outra viagem aos anos 80? Sim, mas o olhar de "OS PASSAGEIROS DA NOITE" dificilmente se confunde com o de filmes ou séries recentes ancorados na década de todos os excessos. Desde logo porque o novo drama de Mikhaël Hers é dos mais contidos e discretos - e percorrido por uma sensibilidade desarmante, numa das primeiras grandes estreias de 2023.

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Uma mulher incapaz de lidar com o divórcio enquanto procura trabalho, dois filhos que optam pela fuga para a frente e uma rapariga à deriva que encontra o conforto possível nesta família parisiense em crise. Em traços gerais, o argumento de "OS PASSAGEIROS DA NOITE" não se afasta muito destas situações com muito pouco de especial, mas o segredo do filme está na forma como Mikhaël Hers molda tudo o que está à volta delas. E não há pormenor que escape ao realizador francês nesta quarta longa-metragem de uma obra pouco vista por cá - embora se imponha como uma filmografia a descobrir tendo em conta este exercício tão melancólico como afectuoso e atmosférico.

Guiado por uma Charlotte Gainsbourg em estado de graça, na pele de uma mulher simultaneamente desamparada e emancipada, é um retrato de época imersivo como poucos, com uma reconstituição dos anos 80 que não se reduz ao efeito (noutros casos escancarado e garrido) de reconhecimento e nostalgia.

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É verdade que há piscares de olho à música e ao cinema da altura: das canções de Lloyd Cole & The Commotions, Television, Joe Dassin ou Kim Wilde (com a mesma "Cambodia" que já tinha inspirado a cena de antologia de "Em Paris", de Christophe Honoré) a revisitações de Eric Rohmer e Jaques Rivette, mas também de "Gremlins" ou do injustamente esquecido "Asas de Liberdade" ("Birdy", no original), de Alan Parker.

Mais surpreendente, no entanto, é a colagem de elementos que tornam o filme num pequeno prodígio estético, da realização que cruza a acção, captada em 16mm, com imagens de arquivo (verdadeiras ou falsas?) de forma quase imperceptível, à fotografia envolvente de Sébastien Buchmann, granulada, esbatida e dominada por azuis e cinzentos. A banda sonora ajuda e, além das canções da época, destacam-se os instrumentais de piano e sintetizadores de Anton Sanko, perfeitos para traduzir esta Paris soturna e muitas vezes nocturna, sempre com arranha-céus à vista - começando pelo cenário das gigantescas janelas do estupendo apartamento familiar, local de eleição de boa parte das cenas.

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Claro que todo este apuro visual e sonoro não surtiria grande efeito se não tivesse um retrato das personagens à altura. "OS PASSAGEIROS DA NOITE" nunca deixa de as abraçar numa jornada errante iniciada em 1981, ano a propor ventos de mudança com a eleição de François Mitterrand. A crónica de Hers termina sete anos depois e nem precisa de muitos episódios inesperados (este não é um cinema dado a reviravoltas). Bastam-lhe as pequenas conquistas, algumas perdas e a descoberta de portos de abrigo na rádio ou no cinema - a primeira a permitir uma segunda oportunidade à personagem de Gainsbourg, as salas do segundo a darem mundo aos filhos e à nova cúmplice.

Pelo caminho, o realizador finta as armadilhas de relatos do envelhecimento, da doença ou da toxicodependência e destaca-se como um director de actores atento: Quito Rayon Richter e Megan Northam são revelações a seguir, Noée Abita é decisiva como centro emocional do filme (numa figura tão desamparada como fantasmagórica). Entre os veteranos, além da protagonista, Emmanuelle Béart destaca-se como uma presença intrigante cuja voz acompanha muitas solidões na rádio, pela noite dentro - movida por um humanismo e intimismo condizentes com este belíssimo retrato desenhado por Hers.

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