Fundo de catálogo (117): Goldfrapp
Os GOLDFRAPP nunca mais voltaram a ser os mesmos depois de "BLACK CHERRY". Rompendo com a atmosfera pastoral da estreia, o segundo álbum da dupla britânica optou por cenários hedonistas regados a electrónica quase sempre dançável. 20 anos depois, ainda é dos seus conjuntos de canções mais vibrantes e recomendáveis.
Entusiasmando-se ou não com o alinhamento, ninguém poderá dizer que Alison Goldfrapp e Will Gregory se repetiram com o segundo álbum do projecto que tinham iniciado em 1999. Editado a 23 de Abril de 2003, o sucessor do aclamado "Felt Mountain" (2000) estava nos antípodas da pop de câmara que apresentou os GOLDFRAPP ao mundo.
Em vez das torch songs de recorte cinematográfico, com heranças da folk ou do trip-hop, registos que talvez muitos admiradores esperariam, a dupla propôs um cocktail geralmente fervilhante de synth-pop, electro e furor disco, como se o mote fosse uma festa imaginária com Donna Sumer, Giorgio Moroder, Gary Numan ou Soft Cell na guest list (nenhum destes nomes participou no álbum, mas entre os músicos convocados contaram-se Mark Linkous, o malogrado mentor dos Sparklehorse, nos teclados, e Adrian Utley, dos Portishead, na guitarra e baixo).
"Ansiava expressar outra faceta minha, tanto musical como visual", recordou a vocalista nas redes sociais esta semana, ao celebrar o vigésimo aniversário do álbum. E esse efeito surpresa foi garantido por uma carga vamp e luxuriante, com canções infecciosas sobre amor, desejo ou sexo. Mas também sobre a procura de evasão e transcendência, propósito que também já movia alguns episódios de "Felt Mountain" ("Stare into space, watch the sky", canta Goldfrapp logo no final do tema de abertura, "Crystalline Green").
Curiosamente, o imaginário das letras não deixa de ser tendencialmente campestre e até soalheiro, apesar da moldura urbana e noctívaga da produção. "Train", o primeiro single, está entre as poucas excepções, ao viajar até Las Vegas para uma longa noite desregrada, na linha das tendências electroclash de inícios do milénio.
"Strict Machine", outro single, impôs-se como hino incontestado desta fase ("wonderful electric!") e percebe-se porquê: é onde a nova linguagem do duo surge mais apurada e elevada ao cubo, mantendo-se fresca e estonteante duas décadas depois. Mas há mais pérolas num alinhamento que vale a pena revisitar: "Tiptoe", a conjugar ritmos 8-bit, sintetizadores e orquestrações, é das mais brilhantes, como o são "Deep Honey" e "Hairy Trees", as pontes possíveis com a aura contemplativa de "Felt Mountain" (e dois dos maiores oásis sonoros da discografia dos GOLDFRAPP).
Polly Borland
"Twist", mais acelerada, abriu caminho para direcções que a dupla seguiria no sucessor "Supernature" (2005), esse já um álbum que apostou na continuidade em vez da ruptura. Como aconteceria, aliás, com os outros registos deste percurso, que ora foram fiéis à matriz da estreia ("Seventh Tree", de 2008; "Tales of Us", de 2013), ora retomaram, ta como o terceiro longa-duração, a escola cintilante de "BLACK CHERRY" ("Head First", 2010; e em certa medida o regresso à melhor forma de "Silver Eye", de 2017).
As ramificações deste segundo álbum mantêm-se, aliás, na recente aventura a solo de Alison Goldfrapp, cujos singles divulgados nos últimos meses têm pedido uma pista de dança (visão a confirmar no disco de estreia em nome próprio, "The Love Invention", agendado para 12 de Maio).
Por outro lado, a vocalista não era estranha à imersão electrónica bem antes de formar o projecto com Will Gregory: já tinha dado voz a canções dos Orbital, Tricky ou Add N To (X), estes últimos não muito distantes da carga cinética do instrumental "Slippage", o tema derradeiro de "BLACK CHERRY". Porque afinal nada surge do acaso, mesmo quando traz viragens surpreendentes a uma discografia...