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gonn1000

Muitos discos, alguns filmes, séries e livros de vez em quando, concertos quando sobra tempo

Muitos discos, alguns filmes, séries e livros de vez em quando, concertos quando sobra tempo

Estes melancólicos (e transgressivos) objectos do desejo

O novo cinema sul-americano continua a ser dos melhores motivos para espreitar o QUEER LISBOA. Na 27.ª edição do festival a decorrer no Cinema São Jorge e na Cinemateca, há propostas recomendáveis da Argentina e do Brasil na competição de longas-metragens.

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"PORNOMELANCOLÍA", de Manuel Abramovich: O documental e o ficcional combinam-se e confundem-se nesta primeira longa-metragem de um realizador que se notabilizou nas curtas... e em documentários. Talvez por isso o argentino revele uma segurança assinalável ao focar-se no operário fabril tornado "influenciador sexual" (expressão do próprio) tornado actor porno gay Lalo Santos, mexicano cuja solitária vida pessoal (a julgar pelo filme) e célebre carreira virtual não poderiam estar mais distantes.

O protagonista queixou-se, nas suas plataformas online, do desconforto que a participação nesta obra acabou por lhe trazer, mas Abramovich tem uma visão muito pouco sensacionalista da sua rotina, ao contrário do que o título poderia sugerir. Sim, há aqui nudez e sexo sem grandes travões, mas o tom é mais observacional e meditativo do que gratuito e tititante, e a milhas de um registo de filme pronto a chocar.

O que fica é um olhar melancólico (nesse aspecto, o título não engana) e cru em várias frentes, dos bastidores e transformações do cinema "para adultos" à realidade de quem ainda tem de lidar com o estigma do HIV (por muito que esta se tenha alterado nas últimas décadas, como algumas personagens comentam), aliado a momentos de descompressão temperados com humor, caso das cenas das filmagens das versões sexualmente explícitas de um clássico de Buñuel ("Este Obscuro Objecto do Desejo") ou de um episódio-chave da história mexicana (com o protagonista a encarnar Emilio Zapata). E Lalo Santos não se sai nada mal nesta primeira experiência como actor num filme não pornográfico: é certo que faz quase sempre dele próprio, mas o carisma e peso emocional que mantém são a maior força deste híbrido perspicaz e convincente.

3/5

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"REGRA 34", de Julia Murat: "Estudante de Direito de dia, cam girl à noite", descreve-se a certa altura a protagonista do novo filme da autora de "Histórias que Só Existem Quando Lembradas" (2011) e "Pendular" (2017), que arrebatou o Leão de Ouro na mais recente edição do Festival de Locarno. Apesar de premiado, na Suíça e não só, é um retrato que dificilmente gerará consenso (e ainda bem), ao se impor entre os mais transgressivos e ariscos do Queer Lisboa deste ano enquanto mergulha na vida dupla da protagonista.

Conjugando as leis do desejo com as da constituição, dá mais um motivo para acompanhar o novo cinema brasileiro (já bem representado no QUEER LISBOA 26), mesmo que parte da sua produção raramente atravesse o Atlântico. Tão lúdico como provocador, conjugando subversão e denúncia, parte do machismo e racismo sistémicos para se debruçar sobre as fronteiras entre a violência e o prazer desenhadas na jornada de autodescoberta de uma mulher negra e bissexual (defendida com garra pela quase estreante Sol Miranda).

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Murat está tão interessada em abordar o feminicídio no Brasil como em desmitificar práticas sadomasoquistas (e a asfixia autoerótica em particular), num contraste entre o público e o privado que nunca deixa de ser político e abre um leque de possibilidades a um filme que, à imagem da protagonista, insiste em explorar limites. Às vezes, com desequilíbrios, como quando se centra em debates legais e sociais de alunos universitários de forma algo didáctica, mesmo que com justificação narrativa e, felizmente, a deixar perguntas (acutilantes) sem ter a pretensão de sublinhar respostas.

Mais desenvolto é o olhar sobre o corpo e as possibilidades de relacionamentos não normativos (na linha do conterrâneo "Corpo Elétrico", exibido no festival há uns anos), com uma fluidez extensível a um argumento que vai reforçando heranças da série B, códigos do thriller ou sugestões de body horror - numa fuga para a frente rumo a um final com um muito apropriado clímax de desconforto, obsessão e tensão.

3,5/5

Uma série para acompanhar insónias

Enquanto a cidade dorme, os protagonistas de "STILL UP" conversam e trocam mensagens até altas horas. E os espectadores que os acompanharem na Apple TV+ serão recompensados com uma das comédias mais curiosas da temporada, a julgar pelos três primeiros episódios.

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Comédia romântica ou só mesmo comédia? Há poucos meses, "Platonic" lançou a dúvida ao seguir o reencontro de dois amigos, interpretados por Seth Rogen e Rose Byrne, cuja relação ameaçava ganhar outros contornos. E depois de ter tido uma aposta ganha nessa série, a Apple TV+ volta a centrar-se nas fronteiras entre a amizade e o amor, agora em Londres e pela noite dentro.

Antonia Thomas (revelada na saudosa "Misfits" e mais conhecida por "The Good Doctor") e Craig Roberts (o rapaz que impressionou em "Submarino", de Richard Ayoade, e protagonizou a série "Red Oaks") compõem a dupla que fala todas as madrugadas à distância, através do telemóvel ou do portátil, com uma cumplicidade que sai reforçada pela partilha de insónias crónicas.

"STILL UP" não começa por dizer logo como ou porque chegou a este cenário: há pistas sobre o passado dos protagonistas (de relacionamentos anteriores a actuais) e da agorafobia dele (que o leva a não conseguir sair de casa) e de alguma frustração dela (apesar da vida aparentemente pacata com o companheiro e a filha).

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O carisma da dupla protagonista compensa, no entanto, os espaços em branco destas crónicas de noites tagarelas e também parcialmente em branco. Embora não cheguem a encontrar-se fisicamente nos três episódios iniciais, Thomas e Roberts têm uma química evidente que ajuda a tornar a sua relação credível, e esse é talvez o maior trunfo (pelo menos para já) da série britânica criada por Steve Burge (argumentista com uma longa carreira televisiva) e Natalie Walter (actriz que participou em "I May Destroy You" ou "Breeders" e tem aqui um novo desafio).

"STILL UP" não se sai tão bem a desenhar personagens secundárias, quase todas sem grande espessura, mas talvez os próximos capítulos (a primeira temporada tem oito) consigam levá-las para outros voos. Do arranque, fica uma premissa curiosa que não se torna redundante ao ir propondo variações imaginativas q.b., entre idas a farmácias e viagens de autocarro atribuladas ou um encontro caseiro que leva um dos protagonistas a dar-se conta do que o espectador já desconfiaria. Não é má companhia para quem procurar uma nova série condizente com madrugadas em claro...

Os três primeiros episódios de "STILL UP estão disponíveis na Apple TV+ desde 22 de Setembro. A plataforma de streaming estreia um episódio todas as sextas-feiras.

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