Depois de "Big Little Lies", "The Undoing" ou "Nove Desconhecidos", Nicole Kidman volta a ser (in)feliz no pequeno ecrã em "EXPATS". Meditação sobre o luto e a culpa, a nova minissérie da Prime Video segue a australiana em Hong Kong sob o olhar de Lulu Wang - e deixa motivos para a acompanharmos.
Estranha numa terra estranha, é uma Nicole Kidman melancólica a que encontramos nos primeiros episódios da minissérie inspirada no romance "The Expatriates" (2016), de Janice Y. K. Lee, autora norte-americana nascida em Hong Kong.
Ambientado na região especial administrativa chinesa e com a acção situada em 2014, este drama de seis episódios não deixa de ter sugestões discretas do mal-estar local cujos protestos ecoam fora de portas, mas o arranque dá prioridade a outro episódio conturbado: o que atormenta a família da protagonista, uma norte-americana da classe alta, inquietação que "EXPATS" leva o seu tempo a esclarecer.
As relações familiares e as experiências trágicas que as marcam já tinham sido o foco de "A Despedida" (2019), o filme mais celebrado de Lulu Wang, mas a primeira série da realizadora (que também assume aqui funções de co-argumentista e produtora executiva) deixa de lado quaisquer traços da comédia que temperava esse retrato da perda. Não que se sinta falta dela nos dois capítulos iniciais da aposta da Amazon: a sino-americana revela-se sedutora na construção de uma atmosfera etérea e enigmática, materializada na presença quase esvoaçante de Kidman, mulher sob a influência do trauma, e amparada pela direcção de fotografia de Anna Franquesa-Solano, sobretudo nas cenas nocturnas.
Mas há outras mulheres a sobressair nesta história de narrativas cruzadas. Ji-young Yoo encarna uma jovem coreano-americana cuja vida desmoronou em poucos segundos e lhe impôs o peso da culpa, Sarayu Blue interpreta uma americana de ascendência indiana que reata a amizade com a protagonista enquanto se debate com um casamento fragilizado.
A primeira com urgência, a segunda com delicadeza, ambas agarram personagens que dão outras vivências e peso emocional a um retrato que, caso se concentrasse apenas na de Kidman, se arriscava a ser o enésimo sobre privilégio branco. Não é por aí que Wang parece querer ir, nem em deixar um mero veículo para uma actriz que tem feito parte significativa da carreira recente no pequeno ecrã. Tanto melhor para quem acreditou nela no promissor (mesmo que algo sobrevalorizado) "A Despedida", já a deixar sinais de uma autora perspicaz e sensível...
Os dois primeiros episódios de "EXPATS" estão disponíveis na Prime Video desde 26 de Janeiro. A plataforma de streaming estreia novos episódios todas as sextas-feiras.
Ficção científica cruzada com realismo social, "THE KITCHEN" é uma das novas apostas da Netflix e apresenta uma dupla de realizadores a ter debaixo de olho: Daniel Kaluuya (actor que se estreia aqui atrás das câmaras) e Kibwe Tavares.
Não faltam ideias ao filme com créditos de realização partilhados entre um dos actores britânicos mais aplaudidos dos últimos anos e um autor de curtas que se aventura na primeira longa. Daniel Kaluuya também assume, ao lado de Joe Murtagh ("Gangs of London"), o argumento deste retrato distópico (mantendo assim um percurso paralelo de argumentista iniciado na já distante série "Skins"), e interpreta ainda uma das personagens secundárias, num exemplo de entrega total a um "labour of love" que começou a ser pensado há mais de uma década.
O cuidado com o desenho deste mundo, uma Londres futurista e extremista, é evidente logo aos primeiros minutos e não demora a conseguir um efeito imersivo. Nada mal para uma primeira longa que, além de uma lista de produtores executivos da qual se destaca o nome de Michael Fassbender, terá beneficiado do currículo de arquitecto de Tavares - o bairro que dá título ao filme, último refúgio de minorias empobrecidas que recusam sair apesar de avanços policiais, é uma combinação vívida de heranças do realismo social e sugestões sci-fi.
Num momento em que a gentrificação, a especulação imobiliária, o autoritarismo ou a xenofobia dominam manchetes, "THE KITCHEN" oferece um caldeirão oportuno e imaginativo de tensões sociais, partindo da história um homem cuja mudança desse território de resistência para um complexo habitacional sofisticado é ameaçada pela cumplicidade repentina com um adolescente órfão.
A luta de classes, tema caro ao cinema britânico, está no centro de um filme que arranca com contornos de thriller e vai cedendo espaço a um drama humanista, viragem acompanhada de alguns problemas de ritmo e a expor limitações de um argumento que prometia voos mais altos. Por outro lado, há dois trunfos que nunca falham entre esses desequilíbrios: Kane "Kano" Robinson e Jedaiah Bannerman, o primeiro a manter a intensidade que já tinha demonstrado em "Top Boy" (série que provou que além de músico havia aqui um actor), o segundo uma jovem revelação com uma segurança invulgar no seu primeiro papel.
A química entre a dupla protagonista é tão vibrante como a atmosfera urbana de um mundo não muito longínquo, qualidades de uma visão capaz de se impor mesmo não deixando de se aproximar de outras a espaços (de "Os Miseráveis" de Ladj Ly a "Attack the Block", do mais recente "Gagarine" a alguns episódios de "Black Mirror", há muitas hipóteses de parentes próximos).
E se é pena que secundários como o activista encarnado por Hope Ikpoku Jnr (outro talento valioso encontrado em "Top Boy") não cheguem a ter o desenvolvimento que se esperaria, sequências contagiantes como a de uma festa comunitária (bem-vindo momento de descompressão e ode sentida à cultura negra) dão novo fôlego a relatos com estes contornos - e ajudam muito a dar o voto de confiança a mais encontros criativos entre Kaluuya e Tavares.