À procura da redenção
Do oscarizado drama indie "Depois do Ódio" à comédia pós-moderna "Contado Ninguém Acredita", passando pelo biopic caloroso "À Procura da Terra do Nunca" ou pelo mais experimental "Stay", o alemão Marc Foster tem uma filmografia relativamente recente - a sua obra de estreia inédita em Portugal, "Everything Put Together", é de 2000 - mas vincada por uma assinalável versatilidade, e o facto do realizador apresentar trabalhos seguros tanto em projectos mais independentes como naqueles ligados aos grandes estúdios atira-o para a lista de nomes a ter em conta dentro do cinema nascido nesta década.
"O Menino de Cabul" (The Kite Runner), o seu mais recente filme, confirma que vale a pena continuar a acompanhar o seu percurso e acentua a diversidade estilística da sua obra, adaptando o aclamado romance de Khaled Hosseini e condimentando-o com a sensibilidade já habitual na sua filmografia.
Percorrendo várias décadas, partindo da de 70 para terminar na actual, esta história ancora-se na forte amizade entre dois rapazes de Cabul, que é colocada em causa pouco antes da Rússia invadir o Afeganistão, e o afastamento passa de emocional a físico quando um deles, Amir, emigra para os Estados Unidos.
Passando a adolescência e tornando-se adulto num ambiente muito diferente daquele onde viveu os primeiros anos, Amir é confrontado com memórias da sua infância quando trágicos acontecimentos o forçam a deixar o seu quotidiano relativamente pacato para regressar ao seu país natal, onde terá uma hipótese de redenção pela traição ao seu amigo de infância.
Envolvente estudo de personagens entrecruzado com um olhar sobre os conflitos que têm vitimado o Afeganistão ao longo de vários anos, desde os ataques russos ao domínio talibã, "O Menino de Cabul" é um filme ambicioso, que nem sempre está à altura das suas aspirações mas que cativa pela evidente honestidade e sensibilidade, contornando com inteligência tentações panfletárias e o melodrama enlatado que facilmente poderiam contaminar uma história destes moldes.
Foster aposta num trabalho de realização sóbrio e elegante, conseguindo captar com eficácia as atmosferas de Cabul antes e depois dos ataques e escapando, na caracterização do primeiro cenário, aos lugares-comuns que marcam muitos filmes decorridos em países africanos.
O dia-a-dia das duas crianças na capital afegã origina alguns momentos de antologia, com destaque para o torneio de papagaios, captado com as doses certas de beleza e entusiasmo em sequências de tirar o fôlego e onde o vital recurso a efeitos especiais é tão discreto que passa despercebido.
A narrativa nem sempre tem sequências tão inspiradas, e ao longo de mais de duas horas há alguns desequilíbrios tanto no ritmo como na plausibilidade dos acontecimentos, respectivamente no relato do quotidiano de Amir nos EUA, quase uma sucessão algo esquemática de acontecimentos-chave, e em alguns momentos da recta final, quando o protagonista regressa ao Afeganistão e vive cenas pouco credíveis que fariam mais sentido num filme de acção.
Esses defeitos não chegam, no entanto, a ameaçar a solidez de uma obra que de resto se mostra sempre convincente, sendo difícil não destacar o brilhante elenco, sobretudo no caso da dupla de crianças - no primeiro papel de ambos os actores - e de Homayoun Ershadi, o protagonista de "O Sabor da Cereja", de Abbas Kiarostami, que aqui é apropriadamente intenso e ambíguo na pele do pai de Amir.
Igualmente meritória é a música composta por Alberto Iglesias, habitual colaborador de Almodóvar, responsável pelo reforço da vibração emocional de algumas sequências e pela única nomeação que o filme recebeu para os Óscares, na categoria de Melhor Banda-Sonora.
Não tendo o peso mediático de muitos títulos com mais nomeações que têm chegado às salas, "O Menino de Cabul" corre o risco de ser eclipsado por estes junto do grande público, mas não será seguramente por falta de qualidades, uma vez que esta é uma obra acima da média e mais um passo em frente no interessante percurso de Marc Foster - que, entretanto, já se encontra a preparar a próxima aventura de 007, alargando ainda mais a sua versatilidade.