A grande festa dos anos 80
Ainda 2008 não completou o primeiro trimestre e recebeu já aquele que será, provavelmente, o maior concerto do ano. Numa actuação de mais de três horas, os britânicos Cure esgotaram ontem o Pavilhão Atlântico com uma sucessão de êxitos entre a pop agridoce e canções de perfil gótico e pós-punk. A quantidade nem sempre equivaleu a qualidade, mas foi uma bela noite de revisitação de clássicos.
Às prometidas 21 horas, o quarteto liderado por um Robert Smith igual a si próprio - vestido de negro, devidamente despenteado e maquilhado - subiu ao palco do Pavilhão Atlântico e foi logo acolhido por uma ovação de milhares de espectadores, os mesmos que esgotaram o espaço há semanas e que aguardavam ainda há mais tempo pelo regresso da banda a Portugal - duas décadas após a sua estreia, por alturas da edição de "Disintegration".
A noite abriu precisamente com duas canções desse álbum - porventura o mais marcante do grupo -, as atmosféricas "Plainsong" e "Prayers for Rain", a primeira vincada por vários minutos de deslumbre instrumental até que a voz de Smith assinalou um baptismo de fogo, a segunda sedimentando um ambiente denso e arrepiante durante vários minutos.
Depois deste início arrebatador, o alinhamento só viria a exibir a mesma intensidade algumas canções depois, com a belíssima "Pictures of You", talvez o momento mais inebriante do espectáculo, onde o público se mostrou mais entusiasmado e assim continuou em "Lullaby", um daqueles temas ja intemporais que muitos descreviam como "a canção do Spider-Man" e contava-se certamente entre as mais esperadas - e mais uma vez confirmou que "Disintegration" é um disco que soube envelhecer bem.
Capaz de apresentar episódios memoráveis como estes, o concerto nem sempre se manteve tão envolvente e por cada momento alto contou com dois ou três em piloto automático, onde alguns temas se mostraram incapazes de resistir ao peso dos anos - pelo menos ao vivo. A escassa comunicação da banda com o público - pouco mais do que ocasionais agradecimentos de Smith - não ajudou a disfarçar esta correcta, mas por vezes morna sucessão de canções.
Felizmente, sequências imbatíveis como aquela que disparou "Friday I'm In Love", "In Between Days" e "Just Like Heaven" de seguida conseguiram equilibrar a actuação, e de resto este trio de canções parece ter nascido para se complementar, ou não fosse aquele onde os Cure deram maiores provas da sua notável capacidade para criar irresistíveis pérolas pop que convivem muito bem com momentos mais soturnos e intrigantes.
Daí até aos encores, grande parte do público dos balcões voltaria a sentar-se para parar de dançar, já que as últimas canções do alinhamento não exibiram o mesmo impacto e funcionaram enquanto compasso de espera para acolher temas obrigatórios que teriam de surgir mais cedo ou mais tarde.
Foi o caso da arrepiante "A Forest", que encerrou o primeiro de três encores e funcionou enquanto óptimo ponto de comunhão entre banda e público, ou de "Lovecats", "Let's Goto Bed" e "Why Can't I Be You", que marcaram o segundo incitando a uma massiva euforia dançável. O clássico "Boys Don't Cry" iniciou o terceiro, mantendo o carisma de sempre, e a noite terminou, por fim, com "Killing an Arab", o primeiro single da banda que foi o último das mais de três horas de concerto e quase quarenta canções.
Espectáculo assumidamente nostálgico - o alinhamento assentou quase sempre em canções da década de 80 e os poucos novos temas passaram quase despercebidos -, proporcionou um curioso encontro de gerações, dos ex-góticos que agora são pais de família e surgiram acompanhados pelos filhos aos muitos adeptos da banda no formato "Greatest Hits", que ali dançaram ao som de canções que emigraram de discretos clubes nocturnos para inúmeras playlists, atestando o alargamento e heterogeneidade do público dos Cure ao longo de quatro décadas.
Enquanto continuar a demonstrar esta eficácia ao vivo, o quarteto de Robert Smith, Porl Thompson (guitarra), Simon Gallup (baixo) e Jason Cooper (bateria) dificilmente sofrerá muito pela falta de inspiração dos seus últimos discos, uma vez que os temas que criou na sua fase áurea já lhe renderam adeptos incondicionais, não sendo de admirar que o grupo atravesse mais uma ou duas décadas.
Antes dos Cure, a música no Pavilhão Atlântico arrancou com os 65daysofstatic, que trouxeram de Sheffield o seu pós-rock nao muito distante dos domínios dos Mogwai, mas também capaz de se entrecruzar com rajadas sónicas herdeiras dos melhores instrumentais de uns Nine Inch Nails. Não estiveram em palco mais de meia hora, ainda que esse tenha sido tempo suficiente para demonstrarem coesão instrumental e engenho na edificação de atmosferas minuciosas e contrastantes. Uma boa estreia por cá de um projecto que merece actuar em nome próprio assim que possível.
Fotos: Eduardo Santiago
The Cure - "Plainsong (Live)"