Jantar de família(s)
Há quatro anos, o tunisino Abdel Kechiche apresentou em "A Esquiva" um curioso retrato dos adolescentes de um bairro social dos arredores de Paris, colocando em jogo o choque de culturas e a crescente miscenização dos centros urbanos franceses - e, por extensão, das sociedades ocidentais.
Agora, com "O Segredo de um Cuscuz" (La Graine et le Mulet), o seu terceiro filme ("La Faute à Voltaire", a primeira obra, não estreou por cá), volta a incidir em algumas temáticas do seu antecessor, debruçando-se sobre uma família francesa de ascendência magrebina residente nas proximidades de Marselha.
O patriarca, Beiji, tem de lidar com o despedimento recente dos estaleiros do porto a que dedicou vários anos, mas essa situação acaba por funcionar como alavanca para a consumação de um sonho repentino: abrir um restaurante num barco moribundo, o único bem que possui e que tenta reconstruir com a ajuda dos filhos - e de uma adolescente que o é em tudo menos nos laços sanguíneos, Rym, filha da sua companheira.
Essa ambição enfrenta, contudo, vários entraves iniciais, desde os burocráticos, dos empréstimos bancários às autorizações da câmara, passando pelos familiares, já que os seus filhos, ex-mulher e companheira se mostram relutantes quanto ao projecto.
Rym acaba por ser a única que o apoia sem reservas desde o princípio, e aos poucos todos preparam uma noite de inauguração do restaurante - cuja criação não chegou a ser autorizada - onde convidam os responsáveis das entidades que contactaram.
O prato principal será o cuscuz que dá título ao filme, especialidade dominada pela ex-mulher de Beiji, mas nem mesmo a minuciosa preparação da noite de abertura consegue escapar a contingências de última hora.
Se nos momentos iniciais "O Segredo de um Cuscuz" quase parece entrar nos modelos programáticos do "filme-denúncia", Kechiche desfaz essa ideia ao desenhar aqui um envolvente drama familiar - que convive bem com alguma comédia e suspense -, vincado por uma inteligência e sensibilidade acima da média.
Não é que a crítica social não esteja presente, mas contempla todas as etnias e classes sociais, mantendo-se a milhas do choradinho pelos menos afortunados e surgindo nas entrelinhas das relações entre as personagens, que aqui são figuras tridimensionais e nunca bandeiras de uma qualquer ideologia.
O facto do realizador recorrer a um elenco de actores não profissionais ajuda a explicar a espontaneidade que emana da maioria das cenas, originando vários momentos de antologia como a credível sequência do almoço em família, onde a realização e as interpretações dificilmente poderiam ser melhor conjugadas, ou todos os momentos da recta final do filme, um prodígio de tensão e imprevisibilidade.
Embora o contexto geográfico seja distinto, esta genuinidade lembra os melhores momentos do cinema de Mike Leigh, tanto pela proximidade com um estilo documental como pelo frequente recurso aos grandes planos ou a cenas longas, que não se conseguem com um actor qualquer.
Algumas destas últimas, juntamente com o final demasiado abrupto e inconclusivo, serão os únicos pontos fracos de "O Segredo de um Cuscuz", que assim atinge as duas horas e meia quando só ganharia se algumas sequências fossem mais curtas - a do monólogo amargurado da nora do protagonista, por exemplo, chega a ser exasperante.
Mas mesmo com três ou quatro cenas algo arrastadas, Kechiche oferece aqui uma das melhores surpresas cinematográficas de 2008, que revela ainda uma jovem actriz com um enorme potencial, Hafsia Herzi.
Na pele de Rym, esta adolescente estudante de Direito assinala uma memorável estreia na interpretação e demonstra um raro magnetismo, sobretudo em momentos como aquele em que tenta persuadir a sua mãe a ir à inauguração do restaurante, um dos mais intensos e emotivos do filme.
O seu prémio de Actriz Mais Promissora na mais recente edição dos Césares foi, por isso, muito bem atribuído, assim como o foram as outras três distinções a "O Segredo de um Cuscuz" no mesmo evento (Melhor Realizador, Argumento e Filme) ou o Prémio Especial do Júri no Festival de Veneza.
Espera-se que contribuam para que um filme com uma campanha promocional tão discreta chegue a uma faixa mais alargada de público, pois é daqueles que não merece passar despercebido nesta altura onde, como em nenhuma outra do ano, os blockbusters concentram atenções.