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gonn1000

Muitos discos, alguns filmes, séries e livros de vez em quando, concertos quando sobra tempo

Muitos discos, alguns filmes, séries e livros de vez em quando, concertos quando sobra tempo

Beleza americana

Se há casos em que a realidade pode ser mais estranha do que a ficção, o de Barbara Daly é forte candidato a um, por ter gerado polémica como poucos nas esferas da alta sociedade norte-americana entre as décadas de 40 e 70 - em especial nesta última, na altura da sua morte.

A vida desta ex-modelo casada com um magnata da indústria dos plásticos - do qual viria a separar-se - já tinha encorajado um livro, da autoria de Natalie Robins e Steven M.L. Aronson, que por sua vez inspirou o filme "DESEJOS SELVAGENS - SAVAGE GRACE", de Tom Kalin.

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O realizador, envolvido em títulos de culto como "Swoon" ou "I Shot Andy Warhol" (neste como produtor), narra a ascenção e, sobretudo, a queda de uma mulher que nem sempre conseguiu camuflar os tumultos da sua vida familiar com a imagem segura que projectou pelos círculos sociais em que se moveu.

Simultaneamente fonte e alvo de boatos, principalmente acerca da dúbia relação que manteve com o seu filho pela forma como reagiu à homossexualidade deste, é aqui retratada como exemplo de uma american way of life vincada por contrastes, onde os sociais deixam fortes marcas nos emocionais - as suas origens, mais humildes do que as do marido, acabam por ser vistas pela própria como a maior barreira na sua convivência conjugal.

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Pegando em alguns episódios da sua vida, desde a gravidez até à morte, "DESEJOS SELVAGENS - SAVAGE GRACE" resulta num drama frio e claustrofóbico, com um olhar duro sobre as relações humanas capaz de explorar bem o quotidiano familiar, dividido entre o tédio e a frustração, que se esconde atrás de capas de revista com uma felicidade de papel de parede.

Este olhar subtilmente cáustico sobre famílias disfuncionais está longe de ser uma novidade no cinema norte-americano de raiz independente, mas Kalin sabe como desenvolver uma teia dramática com tanto de envolvente como de sinuoso.

Um dos realizadores associados ao new queer cinema, movimento de inícios dos anos 90 que propôs novas abordagens à sexualidade, exibe ainda sinais dessa linhagem tanto em alguns dos temas que explora como na peculiar dimensão cénica da maioria das sequências - onde uma carga realista se entrecruza com a teatral.

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Essa singularidade nem sempre joga a seu favor, já que "DESEJOS SELVAGENS - SAVAGE GRACE" desequilibra-se no último terço e é alvo de um final demasiado abrupto, onde o argumento dá mais atenção aos acontecimentos do que às personagens - e aposta em cenas mais sórdidas, na linha do controverso "Minha Mãe", de Christophe Honoré (com as devidas distâncias, o resultado é quase comparável ao que sairia de uma improvável mistura entre esse filme, melodramas de Douglas Sirk e os ambientes de Todd Haynes).

Não chega, contudo, a abalar a consistência anteriormente conseguida onde se destacam uma realização inspirada e atmosférica ou a interpretação de Julianne Moore, que emana sem reparos a postura frágil e alienada da protagonista.

Eddie Redmayne, no papel de filho desta, é outra boa opção de casting, tanto por parecer de facto filho de Moore como pela estranheza e inquietação que transmite.

O tal desenlace talvez impeça que "DESEJOS SELVAGENS - SAVAGE GRACE" seja um grande filme, mas não de constar entre as boas estreias do ano, abordando de forma perspicaz um tema que poderia facilmente descambar num aparentado de telefilme manipulador e escabroso baseado em factos verídicos.

3/5