Uma aula de grande cinema
O cenário é quase sempre o de uma sala de aula, situada num liceu de um bairro multirracial em Paris mas que poderia ser de outra cidade.
As personagens, tanto os professores como os alunos, não se distinguem muito dos que se encontram diariamente no metro ou num centro comercial.
O argumento resume-se a uma sucessão de acontecimentos tão prosaicos e reconhecíveis que sugerem que o filme é um documentário e não um exercício ficcional.
Mas "A Turma" (Entre les Murs) é mesmo ficção, inspirada no best-seller de François Bégaudeau, um professor que aí relatou a sua experiência com uma turma do liceu durante um ano lectivo, e o livro encorajou Laurent Cantet a levar ao grande ecrã um tema que já o interessava há muito: o ensino.
O seu sentido de oportunidade não podia ser melhor, ou não estivesse esta questão - cada vez mais vista como problemática - no centro da agenda mediática (e social). Mas além da temática pertinente, o realizador tem a seu favor o facto de conseguir abordá-la com uma sensibilidade, contundência e perspicácia que tornam "A Turma" num documento francamente mais desafiante e esclarecedor do que muitas reportagens ou debates.
Para isso não terá sido alheio o peculiar método de trabalho definido por Cantet, que escolheu o próprio autor do livro para protagonista, recorrendo ainda a alunos do liceu parisiense onde decorre a acção para compor a sua turma.
A união de actores não-profissionais e o incentivo ao improviso - ainda que com situações baseadas nas do livro - ajuda a explicar a impressionante verossimilhança que cativa cena a cena, ao longo de cerca de duas horas de cinema vivo, inquietante e inspirado.
A partilha de conhecimentos na sala de aula tanto gera aqui momentos espirituosos, potenciados por um professor que tenta sempre aproxima-se dos seus alunos, como tensos e conturbados, quando a relativa tolerância que defende é ameaçada por ocasionais desafios à sua autoridade.
Entre risos francos e esgares nervosos, "A Turma" vai desenhando um envolvente olhar sobre um microcosmos complexo, palco de um jogo psicológico cujo desenvolvimento volátil pode levar ao conflito - frequentemente verbal, embora por vezes camuflado, e no limite até mesmo físico.
Desta amálgama de contrastes (sociais, culturais, raciais, sexuais) e da tentativa para que haja um espaço que as equilibre nasce um olhar apurado sobre a(s) juventude(s) das grandes cidades e os modelos do ensino, que Cantet nunca torna politicamente correcto, acusador ou paternalista, levantando várias questões e deixando juízos de valor e eventuais respostas para o espectador.
Alicerçada nas possibilidades do digital, a realização dá continuidade ao realismo árido dos filmes anteriores do cineasta, mas é em "A Turma" que os resultados se apresentam mais consistentes, assinalando o ponto alto de uma filmografia que tem subido de interesse a cada obra.
Se em "Recursos Humanos" (1999) a abordagem aos conflitos entre a esfera laboral e familiar pecava pela excessiva carga panfletária, "O Emprego do Tempo" (2001) distinguiu-se como uma proposta mais subtil e original aos mesmo temas, que veio a ser superada por um cru retrato do turismo sexual no surpreendente "Vers le Sud" (2005) - o seu filme de estreia, "Les Sanguinaires" (1997), não passou por salas nacionais.
Além de ser melhor do que esses, "A Turma" é também dos mais recomendáveis de 2008 - neste caso, a Palma de Ouro em Cannes foi bem entregue - e tem potencial para dizer muito a um público alargado, tanto adolescente como adulto, situando-se muito acima dos habituais filmes centrados em jovens que proliferam pelos multiplexes. Está aqui um óptimo pretexto para uma visita de estudo às salas de cinema no início deste ano lectivo, portanto.
4/5