Entre o caos electrónico e a placidez acústica
2008 assinalou o regresso aos discos de algumas das mais emblemáticas cantoras celebrizadas na década de 80. Grace Jones voltou após um longo hiato com o aplaudido "Hurricane", Cyndi Lauper fez o mesmo em "Bring Ya to the Brink", e Madonna completou meio século com "Hard Candy".
Não menos marcante do que estas, embora desde o início alvo de menor mediatismo, Anne Clark também apresentou recentemente um novo álbum, "The Smallest Acts of Kindness", 13 anos depois do anterior registo a solo ("To Love and Be Loved", de 1995).
Figura pioneira da new wave, que cruzou com spoken word e electrónicas soturnas em inícios dos anos 80, manteve actividade constante ao longo dessa década e durante parte da seguinte, com vários discos que definiram uma sonoridade própria onde a música e a palavra tinham a mesma relevância (a que não será alheio o facto de, além de cantora e compositora, ser também poetisa).
Apesar de pontuais singles com algum mediatismo, o sucesso comercial nunca foi particularmente forte, o que não impediu que a sua obra se mantivesse entre as mais influentes dentro da electrónica mais vanguardista, tendo fãs confessos como Alec Empire (dos Atari Teenage Riot), Sven Väth ou Mouse on Mars.
Em "The Smallest Acts of Kindness" as suas marcas de personalidade mantêm-se, mesmo que a produção e parte da composição tenham sido entregues ao alemão Xabec.
"Nothing Going On", o primeiro tema, deixa claro que este é um disco de Anne Clark, seja pelo pela electrónica com um forte sentido atmosférico e contemplativo, pela opção pelo spoken word ou pela inquietação da letra, todos elementos de um território reconhecível que contudo sugere aproximações ao imaginário dos 12 Rounds ou dos Golden Palominos (fase "Dead Inside").
Esta porta de entrada é, no entanto, pouco representativa do álbum, uma vez que a segunda canção, "The Hardest Heart", envereda por domínios mais acústicos, dando espaço ao violoncelo e piano, que também são os protagonistas de grande parte dos temas seguintes.
Mais plácidos e despojados do que o habitual em Anne Clark, momentos como este, "Waiting" ou "Know" não comportam o experimentalismo pelo qual a cantora se notabilizou mas resultam em belas canções onde melancolia e esperança se entrecruzam.
Em "Psalm" a electrónica regressa, ainda que de forma discreta, e o seu embalo rítmico conjuga-se bem com palavras cortantes acerca da forma como o Homem encara a religião, evidenciando que a sua autora continua a fazer música de intervenção atípica e intensa.
O espiritual torna-se épico em "As Soon as I Get Home", e em "Off Grid" revisita-se uma história de amor adolescente ao luar, cujo tom tranquilo e quase bucólico contrasta com a urgência de "Boy Racing" e "Prayer Before Birth" ou o dinamismo do instrumental "Zest!".
Estes momentos da recta final do disco assinalam um regresso imponente da electrónica, que tem o seu auge no genial primeiro single, "Full Moon", um dos mais arrebatadores dos últimos meses.
Autêntico vendaval musical, une teclados e sintetizadores às palavras de Clark numa atormentada análise ao mundo de hoje, e é quase um update de temas clássicos da cantora como "Our Darkness" ou "Homecoming".
"If", a derradeira faixa do álbum, reforça o tom apocalíptico ao prever um pouco admirável mundo novo, arrancando em modo pausado, quase só com voz, para explodir na segunda metade durante o episódio mais frenético do alinhamento.
Mesmo que os restantes não contem com o mesmo nível de inspiração, não deixa de ser algo injusto que "The Smallest Acts of Kindness" seja um forte vencedor na categoria de "melhor disco de 2008 que (quase) ninguém ouviu".
Mas depois de quase três décadas a criar outros álbuns com o mesmo estatuto, felizmente isso não será impedimento para que Anne Clark continue a surpreender. Só se espera que não demore mais 13 anos a fazê-lo.
Anne Clark - "Full Moon (Live at Gigant, Apeldoorn)