Saltar para: Post [1], Pesquisa e Arquivos [2]

gonn1000

Muitos discos, alguns filmes, séries e livros de vez em quando, concertos quando sobra tempo

Muitos discos, alguns filmes, séries e livros de vez em quando, concertos quando sobra tempo

Uma mulher sob influência

 

Enquanto nos vamos embrenhando na rotina da protagonista de "Elena", uma mulher de meia idade cuja lealdade ao marido ameaça ser incompatível com a devoção ao filho e aos netos, o novo filme de Andrei Zvyagintsev (realizador do amplamente elogiado "O Regresso", de 2003) vai desenhando um dos dramas familiares mais desconfortáveis dos últimos tempos (ou pelo menos de um Verão cinematograficamente anémico, para não fugir à regra).

 

Cena a cena, entre planos fixos minuciosamente enquadrados e travellings quase tão pacientes, este olhar sobre uma mulher e duas famílias (a sua e a do seu marido doente) nasce de um realismo que, mesmo insistindo numa atmosfera crua e até cortante (reforçada pela banda sonora lúgubre de Philip Glass), não rejeita algum humor nas entrelinhas (como quando comprova que o telelixo é sempre telelixo, seja falado em russo ou em português) ou ocasionais momentos em que a frieza detalhista dá lugar a uma sensibilidade que nos apanha de surpresa.

 

Longe de ser um filme de digestão fácil, "Elena" revela-se quase sempre intrigante ao acompanhar o dilema moral de uma "mãe coragem" que, mais do que um estudo de personagem ou um ensaio sobre a natureza humana, é o ponto de partida para um retrato crítico, embora não fundamentalista, de uma realidade que ultrapassa o carácter doméstico destas situações.

 

A força da proposta de Zvyagintsev é variável: se a protagonista convence enquanto personagem de corpo inteiro, o seu filho, nora e neto mais velho têm dificuldade em sair da caricatura. Também é pena que algumas cenas mais contemplativas, por muito formalmente admiráveis que possam ser, deixem a sensação de palha narrativa (sobretudo na primeira metade do filme). Mas limitações como essas são mais do que compensadas por sequências que vão do ressentimento à ternura em três ou quatro frases, gestos e olhares (como a do pai e da filha no hospital, uma lição de cinema com diálogos que perfuram), pela inteligência, rigor e inquietação da mise en scène do realizador russo ou pelo desempenho de Nadezhda Markina, pilar narrativo e emocional de "Elena". Chega e sobra para trocar a praia pela sala de cinema durante quase duas horas.