Dentro de casa
Caetano Veloso não só é admirador incondicional como o considera um dos melhores filmes brasileiros de sempre. O New York Times colocou-o na lista de melhores de 2012. E vários festivais internacionais também não têm poupado elogios a "O Som ao Redor", a primeira longa-metragem do realizador e crítico Kleber Mendonça Filho, cujo currículo já juntava várias curtas e um documentário.
O som não está no título do filme por acaso. Esse elemento é mesmo um dos mais decisivos - e exemplarmente trabalhados - deste mosaico urbano e humano centrado num condomínio privado dos subúrbios do Recife. Funciona, aliás, muitas vezes como elo de ligação entre vinhetas do quotidiano sem relação aparente - além da partilha da rua -, seja pelo ladrar quase constante de um cão (sobretudo durante a noite, como uma dona de casa desesperada pode atestar), do ruído de obras, de uma máquina de lavar roupa multiusos ou da música, esta sempre utilizada enquanto som ambiente e elemento da acção (e não como mero adorno).
A intromissão de sons de divisão para divisão, de apartamento para apartamento, de cena para cena, chega a lembrar os últimos filmes de João Canijo, embora o realizador de "Sangue do Meu Sangue" a faça geralmente através dos diálogos. A sonoplastia de Mendonça Filho tem outro peso e vai moldando o tom destes episódios com um nervoso miudinho em crescendo, à medida que a vasta galeria de personagens e os contrastes entre o espaço público e privado nos dão um retrato das clivagens sociais e das relações de poder.
Felizmente, "O Som ao Redor" não cai na militância ostensiva nem em personagens-tipo, ainda que Mendonça Filho também não tente ser muito subtil (e para isso lá estão, entre outros, grandes planos estratégicos de chinelos, ou falta deles).
O evidente rigor formal poderia tornar o passeio por este microcosmos num mero exercício estético (e estéril), mas se o puzzle deixa algumas peças de fora (ou talvez precise de um revisionamento para se completar), a narrativa é mais enigmática do que abstracta, e quase sempre magnética. Sem os clichés de alguns filmes brasileiros mais mediáticos (garridos e viscerais), e ainda mais longe de formatos telenovelescos, "O Som ao Redor" acumula cenas prosaicas com diálogos muitas vezes pouco fluídos (a milhas da tagarelice de outras ficções brasileiras e bem mais verosímeis) e faz alguns desvios para territórios do thriller ou mesmo do terror (e aí percebe-se que Mendonça Filho aponte John Carpenter como uma das principais influências).
É pena, por isso, que o retrato fique, no todo, aquém da carga sensorial conseguida em várias cenas, impecavelmente conduzidas e interligadas. O final, sem ser desapontante, não está à altura da tensão construída ao longo de duas horas, assente em óptimos presságios que pediam um remate mais elaborado e com outra força. Mas mesmo não mantendo a excelência, "O Som ao Redor" dá a conhecer um realizador com mais personalidade na estreia do que muitos veteranos ao longo de uma carreira. Se isto for só o princípio, os elogios também ainda estão só a começar...
3/5