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gonn1000

Muitos discos, alguns filmes, séries e livros de vez em quando, concertos quando sobra tempo

Muitos discos, alguns filmes, séries e livros de vez em quando, concertos quando sobra tempo

Entre estranhos e amantes

 

Do conforto de estranhos a um jogo - sexual e mortal - entre vítimas e predadores. É este o percurso traçado em "O Desconhecido do Lago", de Alain Guiraudie, premiado em Cannes mas nem por isso imune a críticas pelo cruzamento arrojado entre o policial, erotismo gay e um tom atmosférico. Arrojado, mas longe de escabroso ou gratuito, até porque as muito faladas cenas de sexo explícito são menos predominantes do que os momentos de diálogo em que a câmara olha de frente a nudez masculina - e essa naturalidade, por ser tão terra-a-terra, é bem capaz de trazer mais desconforto a alguns espectadores.

 

Com tanto de carnal como de clínico, este retrato cru sobre o desejo, a solidão, a intimidade e a atracção cada vez mais dominante pelo risco nunca abandona o lago que dá título ao filme, cenário aparentemente idílico (e com fotografia luminosa a condizer), pelo menos até ao cair da noite, e realidade alternativa com códigos e comportamentos muito específicos.

"O que aqui é uma atitude normal seria considerada a de um tarado lá fora", diz a certa altura uma das personagens, a mais contemplativa e a única a recusar o jogo de sedução e gratificação efémera. Quando um outsider entra nesse terreno habitualmente delimitado - o inspector que investiga uma morte no lago - o filme questiona a entrega desses homens aos excessos e impulsos mais primitivos, à imprudência deliberada, ao teste dos limites do perigo - em última instância, à incitação da morte (a grande, depois da digressão pela "petit mort").

 

 

Apesar desse confronto de valores, "O Desconhecido do Lago" não julga as suas personagens. Limita-se a retratar o lado mais visceral de vidas duplas que procuram na praia um escape para um quotidiano menos estimulante - ou uma possível via para que o mundo lá de fora possa ser partilhado de forma tão intensa e voraz como em alguns desses encontros. Pouco a pouco, o voyeurismo vai cedendo espaço ao suspense e a redundância inicial dá lugar a um thriller que transforma o paraíso num inferno.

 

A segurança com que Guiraudie caracteriza estes ambientes e desenvolve uma narrativa minimalista, mas sempre envolvente, é uma surpresa depois de alguns dos seus filmes anteriores - "Os Bravos Não têm Descanso", "O Rei da Evasão" - terem mergulhado em universos marginais sem uma abordagem especialmente inspirada.

Por outro lado, não se percebe que "O Desconhecido do Lago" seja tão aplaudido quando "O Nosso Paraíso", de Gaël Morel, foi tão ignorado (e atacado) no ano passado, embora partilhe alguns dos seus elementos (uma representação pouco cândida dos homossexuais, uma narrativa guiada pelo sexo e pela morte) e não tenha sido menos convincente. Seja como for, está aqui um dos filmes do ano, mesmo que não seja para todos os gostos - neste caso, isso só lhe fica bem.