Quotidiano delirante
"A Vida Secreta de Walter Mitty" até pode ser o filme mais conseguido do Ben Stiller-realizador desde o primeiro - o já velhinho "Jovens em Delírio" ("Reality Bites"), carismática radiografia da geração X -, mas ainda deixa a sensação de ter ficado uns furos aquém do potencial - mesmo que não tanto como os antecessores "O Melga", "Zoolander" e "Tempestade Tropical", onde o actor também esteve à frente e atrás das câmaras.
O primeiro terço é muito promissor e inesperadamente inventivo no retrato de um dia-a-dia pessoal e laboral dominado por uma sensação de vazio ininterrupta, ou quase - quase, porque o protagonista se ausenta da realidade para se imaginar em fantasias ancoradas no risco e na aventura. Este mote, baseado num conto homónio de James Thurber, publicado na The New Yorker em 1939 e adaptado para cinema por Norman McLeod na década seguinte, é recontextualizado, e bem, num filme muito do seu tempo - o de Ben Stiller, o nosso - com temas que não serão estranhos a qualquer noticiário.
Precariedade, despedimentos colectivos, a obsessão pelo online e outros sinais da interminável crise alimentam uma comédia desencantada - mas não derrotista - que, ironicamente, é mais segura no desenho de um quotidiano sem luz ao fundo de túnel do que na jornada libertadora que tenta contrariá-lo.
Quando "A Vida Secreta de Walter Mitty" abandona a turbulência das ruas e o tédio dos open spaces para se atirar a cenários de encher o olho quase desertos, abdica de uma ironia na medida certa para cair num deslumbramento ingénuo visto e revisto em demasiados road movies de auto-descoberta. À medida que o protagonista vai viajando pela Gronelândia, Islândia ou Afeganistão, o filme vai-se aproximando perigosamente de uma estética de anúncio publicitário de idealismo fabricado (como os de operadoras de telemóveis, por exemplo, e nem sequer falta uma previsível banda sonora indie, com Arcade Fire e derivados, depois de também termos ouvido David Bowie ou Human League em cenas mais convincentes).
Ainda assim, o óbvio carinho de Stiller pelas personagens (excepção feita a um administrador de empresa - e seus comparsas - sem grandes qualidades em que até a barba é motivo de escárnio) ajuda a aceitar a inverosimilhança crescente da viagem, cujo tom de fábula moderna nem sempre convive bem com o olhar realista das cenas urbanas.
Walter Mitty, sem se afastar muito de outros papéis de Stiller, mostra um actor perfeitamente à vontade no registo de homem comum, solitário e bem intencionado, e Kristen Wiig sai-se tão bem a fazer de girl next door (ou, no caso, colega do departamento ao lado) que deixa a sensação de que o filme deveria ter sido uma comédia romântica (muito acima da média, quase de certeza). Não por acaso, as cenas entre ambos são das melhores e mais espontâneas, e é pena que "A Vida Secreta de Walter Mitty" invista tanto num registo episódico, mais rotineiro, e com algumas figuras caricatas. As ideias estão lá (visuais, sobretudo, em especial no arranque) e o coração também, mas esta grande viagem fica a meio caminho de um grande filme.
3/5