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Muitos discos, alguns filmes, séries e livros de vez em quando, concertos quando sobra tempo

Muitos discos, alguns filmes, séries e livros de vez em quando, concertos quando sobra tempo

Viagens a Itália (das montanhas ao campo)

Depois do arranque em Lisboa, a 16.ª edição da FESTA DO CINEMA ITALIANO tem em Almada, Penafiel e Beja os seus destinos mais recentes. "As Oito Montanhas", apresentado em antestreia, já pode ser visto no circuito comercial e "Astolfo" ficou entre as outras surpresas iniciais que mereciam mais salas por cá.

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"AS OITO MONTANHAS", de Felix van Groeningen e Charlotte Vandermeersch: esta co-produção belga, francesa e italiana foi das melhores apostas do cartaz lisboeta da Festa e, felizmente, tem direito a passar por mais salas do país. Adaptação do romance homónimo do italiano Paolo Cognetti (2016), assinala a primeira vez em que o autor de "Ciclo Interrompido" (2012) e "Beautiful Boy" (2018) partilha os créditos de realização e de argumento com a mulher, num olhar demorado (atravessa várias décadas durante cerca de duas horas e meia) sobre a amizade masculina.

História da comunhão e da solidão de dois homens, desde a infância aos encontros já em adultos quase todos os verões, na casa isolada que construíram sozinhos nos Alpes Italianos, é um relato meditativo e existencial imune a estereótipos e sublinhados bucólicos, apesar das paisagens de encher a vista (muito bem tratadas pela esplendorosa fotografia em 4:3 de Ruben Impens) e das canções de recorte folk de Daniel Norgrense.

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Também a evitar lugares comuns nos contrastes entre o rural e o urbano, é um drama de câmara que parte de diferenças de classes e de gerações para um estudo de personagens valorizado pelos desempenhos de Alessandro Borghi ("Suburra") e Luca Marinelli ("Martin Eden"), ambos a mostrar porque é que são dois dos actores italianos a seguir por estes dias.

O mergulho a fundo na cumplicidade aparentemente inquebrável entre os protagonistas leva a que o argumento do casal belga não dê assim tanta atenção a outros capítulos das suas vidas (sobretudo da personagem de Marinelli, que circula entre os Alpes e o mundo) nem à já de si limitada galeria de secundários (de qualquer forma, a beneficiar da entrega de nomes como Filippo Timi ou Elena Lietti). E o desenlace, embora tematicamente apropriado e coerente, acaba por não ter a intensidade que momentos anteriores antecipavam. Mas nada disso trava a experiência sensorial e emocional de "AS OITO MONTANHAS", que van Groeningen e Vandermeersch conseguem tornar memorável e singular durante grande parte do tempo. Além de ser dos melhores da Festa (ou de Cannes, onde venceu o Grande Prémio do Júri), é bem capaz de vir a ser lembrado como um dos melhores do ano...

4/5

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"ASTOLFO", de Gianni Di Gregorio: Sabe bem, este reencontro com o autor de "Almoço de 15 de Agosto" (2008) e "Gianni e as Mulheres" (2011), cujos filmes realizados na última década não chegaram ao circuito comercial português. A mais recente comédia dramática do cineasta, argumentista e actor veterano é novamente protagonizada pelo próprio, e isso talvez contribua para que esta crónica sobre o envelhecimento e segundas (ou terceiras, ou quartas) oportunidades volte a parecer tão genuína e palpável como as que o revelaram.

História de um professor reformado obrigado a mudar-se de Roma para uma pequena localidade no interior de Itália, dispara algumas farpas tanto à gentrificação como à religião ou à burocracia dos tempos modernos, mas nunca abdica de uma delicadeza e bonomia contagiantes.

Tão lúcido como lânguido, é um pequeno filme que vai conquistando pelo sentido de observação de episódios do quotidiano rural, conjugando os ajustes e recomeços do protagonista, depois de uma mudança abrupta, com a graça de secundários como os da sua nova pandilha, que se instala na sua casa sem pedir licença, ou de um padre descaradamente oportunista, responsável por algumas das cenas mais hilariantes. Já entre as mais comoventes ficam as que se centram na personagem de Stefania Sandrelli, a experimentar uma nova rotina que não se limite ao papel de avó e a dar ao retrato uma bem-vinda costela feminista.

3/5

Educação sexual (via comédias românticas)

A descoberta do prazer sexual de uma mulher de meia-idade e a relação atribulada entre dois homens estão no centro de duas (boas) comédias em cartaz. Uma mais romântica do que outra, ambas a merecer a ida às salas de cinema.

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"BOA SORTE, LEO GRANDE", de Sophie Hyde: Se para Godard uma mulher e uma arma eram suficientes para fazer um filme, para a realizadora de "52 Tuesdays" (2013) e "Animals" (2019) uma mulher, um homem e um quarto bastam. Pelo menos no título mais recente da australiana, no qual a única arma a apontar são mesmo os diálogos.

Motor narrativo de um encontro que à partida se limitaria ao sexo, a palavra quase nunca sai de cena nesta comédia falsamente romântica ancorada nos encontros entre uma mulher de meia-idade e um jovem trabalhador do sexo num hotel londrino. Ela, uma viúva e professora recém-reformada, tenta conhecer os prazeres do corpo dos quais se viu arredada num longo (e único) relacionamento amoroso - sem direito a experienciar um orgasmo nessa vida a dois. Ele, tão cordial e atencioso como sedutor e esquivo, escuta pacientemente os seus desabafos que expõem inquietações, dúvidas ou constrangimentos que acabam por iniciar uma cumplicidade reforçada em vários episódios.

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Filme de câmara que nunca abdica do minimalismo de espaços e personagens, "BOA SORTE, LEO GRANDE" consegue esquivar-se às acusações de teatro filmado que poderiam minar um projecto destes contornos - basta ver como Hyde é meticulosa quanto ao que e quando mostrar nas cenas de nudez e/ou sexo. Escrito pela comediante britânica Katy Brand, deve boa parte do seu charme não só aos diálogos vivos dos quais se alimenta mas também à química decisiva entre Emma Thompson e Daryl McCormack, ambos com carisma suficiente para que esta história viva sobretudo das suas interações.

Thompson tem aqui um dos seus papéis mais fortes em anos (e dos mais corajosos, em particular numa cena perto do fim) ao revelar as camadas de uma mulher madura que se confronta com o envelhecimento, o corpo, o desejo, a vergonha ou a culpa. Já McCormack é uma revelação num desempenho no qual faz muito mais do que reagir à performance de uma actriz de créditos firmados, passando de ouvinte a instigador, de um estereótipo a uma figura de corpo inteiro.

Dessa entrega e generosidade partilhadas nasce um filme menos ligeiro do que pode parecer à partida, sem deixar de se manter espirituoso durante boa parte do tempo. Só perto do final, quando troca a comunhão pelo conflito, é que "BOA SORTE, LEO GRANDE" perde alguma graça e espontaneidade, numa viragem pouco verosímil que faz notar a mão pesada da argumentista. Felizmente, é uma fragilidade dramática que o desfecho consegue corrigir, retomando a via cómica sem tirar peso a um relato envolvente e caloroso.

3/5

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"BROS - UMA HISTÓRIA DE AMOR", de Nicholas Stoller: Para o melhor e para o pior, o novo filme de "Um Belo Par de... Patins" (2008) ou "Má Vizinhança" (2014) nunca tenta enganar ninguém: é declaradamente uma comédia romântica e sujeita-se ao formato expectável de aproximação, afastamento e reconciliação da dupla protagonista. Mas o facto de o casal ser composto por dois homens, ainda uma raridade num filme de um grande estúdio em 2022 (sobretudo neste registo), é logo suficiente para esta história de amor se diferenciar dentro do género. Sobretudo quando o filme, escrito e protagonizado por Billy Eichner, é bastante certeiro a apontar especificidades dos relacionamentos gay, com um humor muitas vezes autodepreciativo (e autoconsciente) que desmonta estereótipos e tem uma visão despudorada da intimidade e da sexualidade.

"BROS - UMA HISTÓRIA DE AMOR" mostra-se particularmente astuto na primeira metade, quando aponta o dedo, quase sempre de forma hilariante, aos preconceitos e contradições da própria comunidade LGBTQIA+ a partir do quotidiano de um podcaster e director de um museu que, chegado aos 40 anos, acreditava já não ser capaz de se apaixonar.

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"Gay aos 40 Anos" ou "Aguenta-te aos 40" podiam ser, aliás, títulos alternativos desta comédia romântica produzida por Judd Apatow e que partilha alguns defeitos e virtudes com a obra do norte-americano: se a realização, embora competente, é pouco imaginativa, para não dizer televisiva (e logo quando a Netflix apostou em "Uncoupled", série com Neil Patrick Harris na pele de outro homossexual quarentão à procura do amor), o foco num protagonista neurótico, presunçoso e de humor cáustico é ousado q.b. - e vem acompanhado de um abraço sentido a uma vasta (e diversificada) galeria de secundários.

Aludindo aos arquétipos consolidados em "clássicos" com Meg Ryan e disparando farpas às produções pasteurizadas do Hallmark, Eichner dilui a irreverência e a transgressão num terceiro acto obrigatoriamente mais previsível, aderindo de forma deliberada às regras do jogo de comédias românticas com o grande público na mira. Mas quem souber ao que vai verá essa opção mais como feitio do que como defeito, sobretudo quando o protagonista (reflexo nada disfarçado do argumentista) sublinha que um relacionamento gay também tem direito a um final feliz no cinema - e nos seus próprios termos e condições.

Em paralelo, "BROS - UMA HISTÓRIA DE AMOR" não se esquece de quem ajudou a abrir caminho para que um filme assim fosse possível, numa homenagem breve mas determinante a activistas históricos que não surge como elemento estranho na trama amorosa. Já é mais do que se pode dizer de muitas comédias despejadas nos multiplexes, românticas ou nem por isso...

3/5