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Muitos discos, alguns filmes, séries e livros de vez em quando, concertos quando sobra tempo

Muitos discos, alguns filmes, séries e livros de vez em quando, concertos quando sobra tempo

A rede sensual

Viagem ao mundo do ténis pela lente de Luca Guadagnino, "CHALLENGERS" é dos filmes que marcam mais pontos na obra do italiano. Com um trio de jovens actores em estado de graça e um ritmo absorvente, traz ainda uma das bandas sonoras do ano - cortesia de Trent Reznor e Atticus Ross, num dos seus capítulos mais frenéticos e inspirados.

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Se "Ossos e Tudo" (2022) e "Suspiria" (2018) levaram muitos a temer pelo percurso de Luca Guadagnino depois da aclamação do algo sobrevalorizado "Chama-me Pelo Teu Nome" (2017), "CHALLENGERS" vem mudar o rumo do jogo. Propulsivo, confiante e exuberante, este retrato dos bastidores do ténis tem despertado mais aplausos do que esses dois antecessores - pelo meio, em 2020, o italiano cocriou e dirigiu a óptima minissérie "We Are Who We Are", da HBO - e é dos mergulhos em universos desportivos mais singulares do cinema recente.

Embora a modalidade em foco se jogue a dois, o italiano e o coargumentista Justin Kuritzkes (marido de Celine Song, realizadora de "Vidas Passadas") optam antes por centrar a narrativa num triângulo amoroso, a partir da relação de dois amigos de longa data e de outra tenista que se atravessa no seu caminho. E as vidas deles nunca mais serão as mesmas a partir daí, como "CHALLENGERS" vai revelando entre saltos temporais ao longo de treze anos, desde a entrada na idade adulta dos protagonistas até uma fase em que dois deles são já ícones desportivos - e um casal em crise.

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O facto de o salto constante entre passado e presente lembrar o vai-e-vem de uma partida de ténis não será pura coincidência. Mas nada tem de gratuito: é uma escolha muito bem aproveitada por um argumento que sabe sempre o que e quando contar, abrilhantado pela montagem prodigiosa de Marco Costa e, claro, pela realização de Guadagnino, mais atlética do que nunca - desde a cena de antologia em que a câmara atravessa o campo de ténis para se fixar no rosto de Zendaya, entre o público, àquelas em que adopta o ponto de vista da bola.

Para o rasgo estético também contribui a fotografia do tailandês Sayombhu Mukdeeprom e a banda sonora de Trent Reznor e Atticus Ross, que se embrenha nas imagens de uma forma como talvez já não se via desde que a dupla dos Nine Inch Nails se iniciou no frutífero caminho da música para filmes - há já quase 15 anos, em "A Rede Social" (2010), de David Fincher. O disparo de adrenalina quase ininterrupto de "CHALLENGERS" deve muito a temas como a faixa-título ou "Brutalizer", descendentes do techno e da EBM que transitam sem escorregões da pista de dança para torneios desportivos.

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Não menos essencial é a dinâmica entre o jovem trio de actores composto por Zendaya, numa das suas interpretações mais exigentes e versáteis, ao comando da narrativa; Mike Faist, a confirmar as melhores expectativas depois de "West Side Story" (2020), de Spielberg, no vértice mais vulnerável deste triângulo; e Josh O'Connor, na pele de um fura-vidas tão melindroso como talentoso e carismático.

Guadagnino e Kuritzkes divertem-se a atirá-los para uma rede de disputas e cumplicidades onde cabe tanto a determinação como a dependência, o triunfo e a frustração. E também parecem ter algum gozo a baralhar as coordenadas do espectador que espera um filme de desporto tipificado: esta é antes uma comédia dramática que às vezes se veste de comédia adolescente, bromance ou thriller psicológico.

Mantendo a câmara colada ao corpo das personagens (incluindo suor captado em slow motion), Guadagnino carrega a fundo numa sensualidade que não recusa o homoerotismo e pisca o olho ao camp (entre bananas, churros ou saunas, é escolher). E se às vezes parece fazê-lo com mais estilo do que substância, o resultado é tão envolvente e empolgante que acaba por virar o jogo a seu favor, com mestria assinalável.

4/5

O princípio da incerteza

Onde está a verdade?  "ANATOMIA DE UMA QUEDA" não tem a presunção de tentar responder enquanto cruza perspectivas, pistas e géneros na investigação de um possível crime. Certo é que se trata de um triunfo de Justine Triet, a oferecer aqui um dos melhores (e mais justamente premiados) filmes de 2024.

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Vencedora da Palma de Ouro em Cannes, galardoada com o Óscar de Melhor Argumento Original (embora merecesse muitos mais, incluindo o de Melhor Filme), êxito de bilheteira insperado em França, a mais recente obra de Justine Triet foi um passo em frente incontornável depois de títulos mais discretos como "Victoria" (2016) ou "Sybil" (2019). Tão grande que atirou a francesa para a lista de realizadores europeus mais celebrados do momento, mérito de uma combinação hábil e metódica de drama conjugal, filme de tribunal, thriller psicológico e investigação criminal.

Homicídio ou suicídio? Essa é a pergunta que nunca abandona o espectador nem as personagens a partir do momento em que o marido da protagonista, uma escritora alemã, é encontrado morto no chalet da sua família nos Alpes franceses. Mas o que poderia perfilar-se como um mero "whodunit" vai ganhando contornos de ensaio sobre as ambiguidades da natureza humana a partir da crónica (assumidamente parcial e subjectiva) de um casamento tão fracassado como escrutinado. E à questão sobre a inocência ou culpa de uma mulher associam-se outros contrastes - os da esfera pública e privada, do real e da ficção, dos factos e suposições, num novelo narrativo absorvente e a ganhar fôlego de um grande romance.

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Escrito a meias por Triet e pelo seu companheiro, o também realizador (e actor) Arthur Harari - opção curiosa quando a trama se debruça sobre um casal de autores -, "ANATOMIA DE UMA QUEDA" é um prodígio de argumento com correspondência visual e interpretativa, e não parece deixar nenhum pormenor ao acaso num casamento visto à lupa. Dos flashbacks estratégicos, também eles desafios à percepção (e um a deixar uma discussão de antologia, entre fricções e ressentimentos), ao peso de cada palavra (com alternâncias de idiomas pelo meio), passando pela direcção de actores, este retrato mantém-se estimulante ao longo das suas duas horas e meia.

Mas se Triet merece aplausos, Sandra Hüller é outra grande responsável para que este seja um filme de recorte superior. A forma como a actriz alemã encarna uma protagonista enigmática e indecifrável, reservada e decidida a nunca pedinchar a simpatia das outras personagens ou do espectador, por muito apertados que sejam os julgamentos (da Justiça, dos media, da comunidade), revela-se decisiva para que "ANATOMIA DE UMA QUEDA" equilibre tão bem o cerebral e o emocional.

Também a justificar menção obrigatória, o lusodescendente Milo Machado-Graner é um achado como filho do casal, um pré-adolescente quase cego particularmente abalado pelo acontecimento trágico. A acompanhá-lo, o fiel cão Messi ("Palm Dog Award" em Cannes) protagoniza uma das cenas mais tensas, outro exemplo de que Triet sabe ir para territórios inesperados num filme à primeira vista formatado. E se algumas sequências de tribunal talvez acusem a duração e acabem por ceder a opções convencionais, esse será o mal menor(íssimo) de uma das estreias imperdíveis do ano.

4/5