É uma das colecções de hinos mais icónicas da cena Madchester e marcou como poucas a fusão entre guitarras e música de dança no arranque da década de 90. "PILLS 'N' THRILLS AND BELLYACHES", o terceiro álbum dos HAPPY MONDAYS, já fez 30 anos.
À terceira foi de vez. Apesar de o primeiro álbum dos HAPPY MONDAYS, "Squirrel and G-Man Twenty Four Hour Party People Plastic Face Carnt Smile (White Out)" (1987), ter deixado sugestões de hedonismo no single "24 Hour Party People" (que daria título ao documentário de Michael Winterbottom sobre bandas conterrâneas), e de o segundo, "Bummed" (1988), ter aproximado a matriz pós-punk da euforia raver, a banda de Shaun Ryder foi mais certeira na mistura de ingredientes em "PILLS 'N' THRILLS AND BELLYACHES" (1990).
Produzido por Paul Oakenfold e Steve Osbourne, que formaram a dupla de remisturadores (e editora) Perfecto, inspirada pelo trance, acid house e electrónica baleárica, o terceiro longa-duração conciliou o período mais fértil e ambicioso dos HAPPY MONDAYS e o que cimentou uma popularidade crescente... mas que não duraria muito mais, apesar de um quarto disco dois anos depois ("Yes Please!", que levou a editora Factory à bancarrota), e de um regresso já após a viragem do milénio ("Uncle Dysfunktional", de 2007).
Aliando o desbragamento da escrita e postura de Ryder a uma pulsão rítmica bem mais acelerada e festiva do que nos registos antecessores, o alinhamento resultou numa celebração de sexo, drogas e música de dança que ainda é, para muitos, o pico criativo da agitação musical que tomou conta de Manchester em finais da década de 80 - juntamente com o álbum de estreia homónimo dos Stone Roses, editado no ano anterior, baluartes de uma geração que incluiu ainda os Inspiral Carpets, Charlatans ou 808 State, entre outros.
Do palco inicial da discoteca Haçienda a outras noites e madrugadas do Reino Unido, singles como "Kinky Afro" ajudaram a levar o nome da banda e da cena Madchester fora de portas, com guitarras, teclados e batidas a juntarem-se para um delírio psicadélico - reforçado pela presença de Bez, o excêntrico elemento do grupo que só dançava.
Escutado à distância de 30 anos, "PILLS 'N' THRILLS AND BELLYACHES" não deixa de mostrar as marcas do seu tempo e nem sempre brilha da mesma forma, entre momentos contagiantes e outros menos memoráveis. Mas faixas como "Step On" (versão de um tema do sul-africano John Kongos, dos anos 70) ou "God's Cop" justificam a (re)descoberta, ainda que o melhor esteja na contenção relativa das excelentes "Loose Fit" (marcha hipnótica guiada por uma linha de guitarra tremenda) e "Bob's Yer Uncle" (com Ryder em modo mais sussurrante do que espalha-brasas e uma flauta a impor-se). A consumir sem contra-indicações, tirando talvez uma certa nostalgia de quem viveu esta época de forma tão fervilhante como alguns relatos do disco.
Em vez de um difícil segundo álbum, os SCISSOR SISTERS tiveram uma fase mais crítica na altura de editar o terceiro. Mas dez anos depois, "NIGHT WORK" continua a comprovar que o risco valeu a pena - é o melhor dos nova-iorquinos e um dos grandes discos pop da década passada.
De banda do circuito underground da cidade que nunca dorme a fenómeno global, a ascensão dos SCISSOR SISTERS foi rápida e inesperada. Entre o álbum de estreia homónimo, editado em 2004, e o sucessor "Ta-Dah", nascido dois anos depois, o quarteto viu a sua sensibilidade queer e camp ser abraçada pelo mainstream, sobretudo fora de portas, enquanto encontrou vias para uma pop moderna com descendências óbvias dos anos 70.
Um dos cartões de visita, a versão muito livre (e controversa) de "Confortably Numb", dos Pink Floyd, deu logo sinais de um atrevimento que foi da música à imagem, mas a irreverência dos primeiros tempos esmoreceu quando o alinhamento inicial do terceiro disco continha canções mais acomodadas. Ou assim pensou Jake Shears, além de vocalista o principal compositor, que decidiu guardar mais de uma dezena de inéditos na gaveta e recomeçar. Só que ao contrário dos álbuns anteriores, recomeçou fora de Nova Iorque, elegendo Berlim como refúgio de um período no qual lidava com uma depressão.
Shears não esteve sozinho na capital alemã. Os amigos Pet Shop Boys, que também lá moravam em 2008/2009, ajudaram-no a situar-se criativamente e sugeriram um produtor para o novo álbum: Stuart Price, que tinha produzido "Confessions on a Dance Floor" (2005), de Madonna, um dos picos instantâneos tanto da obra do britânico como da rainha da pop. A ideia rapidamente ganhou forma e ajudará a explicar porque é que o terceiro disco dos SCISSOR SISTERS é o mais virado para as pistas.
Price não nada era estranho a ambientes electrónicos (afinal, tinha sido o homem dos Les Rythmes Digitales ou Zoot Woman) e Shears redescobriu-os em discotecas berlinenses como a icónica Berghain - em noites de sexo, drogas e música de dança que teriam reflexo directo na segunda (e definitiva) versão de "NIGHT WORK", das letras à sonoridade.
O apelo físico e noctívago destas canções reveladas no Verão de 2010 deve menos aos anos 70 do que à década seguinte, sobretudo a hinos synth-pop subversivos como "Relax", dos Frankie Goes to Hollywood, que Shears apontou como canção-chave para o conceito do disco. E se a escola dos Bee Gees ou de Elton John não terá sido completamente esquecida, "NIGHT WORK" sugere principalmente audições dos cúmplices Pet Shop Boys ou dos seus contemporâneos Soft Cell, em especial na faceta mais sombria do alinhamento (caso dos relatos de noites bravas das superlativas "Sex and Violence" ou "Something Like This", entre a solidão e a comunhão, a festa e a decadência).
O humor não fica de fora e incita algumas das letras mais espevitadas dos SCISSOR SISTERS, em faixas na linha de "Harder You Get" ("Don't point that thing at me unless you plan to shoot"), "Whole New Way" ("My sneak up from behind is gonna blow your mind") ou "Skin This Cat" (esta a única cantada por Ana Matronic, aqui próxima da vertente luxuriante dos Goldfrapp).
O capítulo mais ousado do grupo desde os tempos em que era um fenómeno de nicho foi logo vincado pela capa do disco, uma foto de Robert Mapplethorpe ao bailarino Peter Reed, tirada em 1980. Mantê-la transformou-se numa das maiores batalhas de Jake Shears, que encontrou resistência na editora e mesmo dentro da banda.
O homoerotismo da imagem esteve longe de ser acidental, abrindo a porta a um alinhamento que, mais do que um olhar amplo sobre a vida nocturna, explora com alguma crueza a noite de ambientes LGBTQI+, sem cedências a um filtro heteronormativo. "Fire With Fire", o primeiro single, será das poucas excepções e é dos temas dos quais o vocalista revelou estar menos orgulhoso. Apontado às playlists radiofónicas, também é daqueles em que os SCISSOR SISTERS se levam mais a sério e destoa particularmente na primeira metade do disco, de tom espirituoso e desbragado.
"Invisible Light", por outro lado, fecha o álbum da melhor forma e mostrou-se um single mais condizente com um álbum ecléctico e destemido. Sir Ian McKellen, convidado de honra numa participação em spoken word, ajuda a deixar aqui um dos capítulos mais memoráveis e épicos da banda - e que pode ser encarado como descendente espiritual do hedonismo assombrado de "Relax".
Menos conhecidas foram as contribuições de Santigold, na composição e coros da new wave desopilante de "Running Out", e de Kylie Minogue, cuja voz também se ouve lá ao fundo numa "Any Which Way" que faz a ponte com os discos anteriores. Mas são dois bons motivos para (re)descobrir o pico criativo de um percurso em hiato desde o registo sucessor, o mais irregular "Magic Hour" (2012), e que apenas teve sucessão na (promissora) carreira a solo de Shears. "You can find your life in the night life", cantou aqui o norte-americano - e acabou por se (re)encontrar na noite de Berlim e num terceiro álbum revigorante.