Este fogo deixa a alma lavada
Depois de dez anos sem actuar em Portugal, EMILY JANE WHITE apresentou o novo disco, "Immanent Fire", no Salão Brazil, em Coimbra, na passada quinta-feira. E além de canções recentes, como "Washed Away", revisitou uma discografia que não merece ficar limitada a um segredo bem guardado.
"A última vez que actuei aqui foi há dez anos. Na altura tinha três álbuns, agora tenho seis", relembrou EMILY JANE WHITE entre os primeiros temas do concerto que a trouxe de volta a palcos portugueses, para uma visita dupla que também contemplou o Teatro Diogo Bernardes, em Ponte de Lima, na sexta-feira.
Foi uma ausência demasiado longa, tendo em conta que a norte-americana tem tido um percurso fértil entre a folk e descendências do indie rock, com uma aventura em nome próprio iniciada no belíssimo "Dark Undercoat" (2007) depois da participação em bandas de metal ou punk na adolescência e dos Diamond Star Halos no início da idade adulta (estes já mais próximos da toada melancólica e intimista que percorre a sua discografia).
Se o despojamento instrumental e escrita confessional da estreia, aliados a um timbre dolente mas caloroso e aveludado, suscitaram algumas comparações iniciais com os relatos de Cat Power, a californiana foi definindo um lugar especial num universo que aceita heranças do gótico sulista, do blues ou do alternative country, assim como dos olhares de Emily Brontë ou Cormac McCarthy, sem que as suas canções fiquem confinadas a um género em particular.
O concerto no Salão Brazil permitiu atestar as variações que a sua música tem tido, ao longo de quase hora e meia que conseguiu incluir "Immanent Fire" na íntegra e vários episódios dos antecessores. Entre as novas canções, mais cheias, às vezes até surpreendentemente épicas, e o minimalismo à flor da pele das antigas, os saltos entre o presente e o passado deram-se sem solavancos, e quase sempre com John Courage (baixo) e Dan Roy Ford (bateria) a acompanharem a cantora - que por sua vez juntou o piano e a bateria à equação, num espectáculo que contou ainda com uma base pré-gravada nos arranjos de cordas, apontamentos electrónicos ou coros.
Em comum, de álbum para álbum, manteve-se o tom sombrio de crónicas que partiram de uma vertente pessoal em "Dark Undercoat" e apostam numa visão mais global em "Immanent Fire", disco marcado por preocupações feministas, ecológicas e espirituais. Embora vestidos de negro, e num palco com um fundo da mesma cor, a artista e os músicos não fecharam a porta a algumas brechas de luz, seja pela voz capaz de manter alguma doçura no retrato da vulnerabilidade, seja pelo sentido melódico que impede que esta música se atire de cabeça ao desespero.
Foi o caso de momentos como "Washed Away", "Drowned", "Shroud" ou "Surrender", todos do novo álbum, todos vincados por uma atmosfera etérea de beleza quase angelical, num contraste com a faceta lânguida e árida de "Sleeping Dead" ou "Cliff", guiada pela guitarra. Já "Dew" quase só precisou de voz e piano para deixar um dos momentos mais comoventes, a lembrar a fase "White Chalk" (2007) de PJ Harvey, numa combinação que se manteve em "The Black Dove" antes de ceder terreno a uma marcha percussiva.
Mas esse reforço da bateria foi talvez demasiado imponente, tanto aí como em "Infernal" ou "Metamorphosis", com a instrumentação a sobrepor-se à voz. Nada que não tenha sido remediado no encore, com a cantora a apresentar-se sozinha em palco, à guitarra, em "Remains II", canção de "Emily Jane White House of Wolves Split EP" (2018), registo criado a meias com o conterrâneo Rey Villalobos (e apenas disponível para venda nos locais dos concertos, assinalou a norte-americana).
Depois de percorrido o novo álbum, houve tempo de mais regressos aos primeiros, com "Victorian America" e "Hole in the Middle", que fecharam em alta um alinhamento coeso e generoso, ainda que se tenha sentido a falta de "Wild Tigers I Have Known", um dos temas que revelaram EMILY JANE WHITE (não só, mas também, através do filme homónimo de Cam Archer, de 2006). Espera-se que tenha, pelo menos, ficado guardado para uma próxima visita a palcos nacionais, até porque a estreia em Lisboa já é mais do que merecida (além de que provavelmente chamará mais público do que o de uma bela sala bem composta). E de preferência, sem implicar esperar mais dez anos...
4/5