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gonn1000

Muitos discos, alguns filmes, séries e livros de vez em quando, concertos quando sobra tempo

Muitos discos, alguns filmes, séries e livros de vez em quando, concertos quando sobra tempo

Os amantes passageiros

Com charme, humor e inteligência bem doseados, "AS COISAS QUE DIZEMOS, AS COISAS QUE FAZEMOS" é um regresso feliz de Emmanuel Mouret. Entre a comédia e o drama, o filme chegou cá na Festa do Cinema Francês e tem direito a passagem (infelizmente breve) pelo circuito comercial.

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Embora mantenha uma obra prolífica desde finais dos anos 90, Emmanuel Mouret não tem sido um habitué nas salas portuguesas, apesar de algumas estreias pontuais - e de o seu filme anterior, "Madame de Jonquières", estar disponível no catálogo da Netflix. Mas quem chegar à filmografia do realizador francês através do seu título mais recente talvez fique com curiosidade de espreitar o que está para trás.

Como outros dos seus filmes, "AS COISAS QUE DIZEMOS, AS COISAS QUE FAZEMOS" chega com comparações aos universos de Éric Rohmer ou Woody Allen, desde logo pela aposta forte nos diálogos - elemento privilegiado para a entrada neste retrato de uma certa burguesia francesa -, mas também pelo perfil romanesco cruzado com uma ironia muitas vezes certeira.

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Por muito que essa descendência até possa ser assumida, seria injusto reduzir este novelo singular de personagens e relações ao trabalho de um mero aluno aplicado. Mouret tem mesmo uma das abordagens mais originais e refrescantes dos últimos tempos às inquietações amorosas, com o mérito de não se levar muito a sério mas também de não olhar de cima para as angústias destes amantes e amados, traidores e traídos, que tão depressa estão juntos como se separam.

Partindo da chegada de um jovem tradutor (e aspirante a escritor) à casa de um primo ausente, na qual é recebido pela companheira grávida deste, "AS COISAS QUE DIZEMOS, AS COISAS QUE FAZEMOS" vai cruzando relatos amorosos dessas duas personagens e apresentando outras figuras, algumas à partida secundárias embora acabem por protagonizar, mais à frente, arcos narrativos destas cerca de duas horas que se percorrem sem esforço.

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Mouret mostra-se hábil na construção de um argumento fluído, não deixando que o espectador se perca na sucessão de (des)encontros em que o bem de uns implica quase sempre o mal de outros. Assim vai o amor? É uma visão possível, ainda que o tom esteja longe de ser cínico ou ancorado em percursos deterministas, cruzando um registo de farsa com desorientação existencial sem nunca fingir discutir mais do que problemas de primeiro mundo.

Apoiado num elenco coeso - liderado por Niels Schneider, Camélia Jordana, Vincent Macaigne e Emilie Dequenne - e num sentido de espaço que convence tanto nas cenas rurais como nas urbanas (intercaladas ao longo da acção), "AS COISAS QUE DIZEMOS, AS COISAS QUE FAZEMOS" está a milhas de um filme verborreico onde as palavras esmagam o cinema, mesmo que Mouret pudesse ter sido mais criterioso a dosear o recurso a música clássica em muitas cenas. E se na recta final talvez dê mais respostas do que precisava, até lá deixa um retrato ao qual não falta savoir faire, elegância e poder de sedução. Que volte depressa às salas portuguesas, e durante mais tempo...

3,5/5

Contra os homens que odeiam as mulheres

"A GANHA-PÃO", "LES HIRONDELLES DE KABOUL" e "WARDI", três retratos no feminino, todos de animação e ambientados no Médio Oriente. E todos a recusar estereótipos de "mulheres fortes" ou do feminismo encomendado pelo politicamente correcto. Um está disponível na Neflix, os outros são dos melhores motivos para não deixar passar a Festa do Cinema Francês.

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"A GANHA-PÃO", de Nora Twomey: Apesar de ter sido nomeada para o Óscar de Melhor Filme de Animação em 2017 (acabaria por perder para "Coco") e de contar com produção executiva de Angelina Jolie,  esta história decorrida em Cabul só chegou ao circuito comercial nacional este ano, e com uma passagem curta pelas salas (depois de ter sido exibida na Monstra em 2018, de onde saiu com o Prémio do Público). Mas está disponível no catálogo da Netflix e merece ser descoberta, ao deixar um relato do dia-a-dia no Afeganistão, em 2001, a partir da experiência de uma menina de 11 anos que decide fazer-se passar por rapaz quando o pai é preso, na tentativa de sustentar a mãe e os irmãos - uma vez que as mulheres não podem sair à rua sem estarem acompanhadas por um homem, sob pena de serem detidas, torturadas ou até mortas pelos talibãs. Entre o realismo possível para uma proposta que se dirige a toda a família e tons de fábula, a segunda longa-metragem da realizadora irlandesa (depois de "The "Secret of Kells", de 2009, co-realizada com Tomm Moore) é uma obra tão segura na vertente visual como no argumento, ainda que as duas aventuras que conta em paralelo não entusiasmem da mesma forma - a urgência do quotidiano da protagonista acaba por sair diluída quando entra em cena a história infantil de inspiração folclórica partilhada com o irmão mais novo. A alternância, no entanto, torna a animação mais contrastante e imaginativa, ao optar por estilos diferentes em cada enredo, numa variação bem-vinda face à oferta dos grandes estúdios. E capaz de dar novas cores e tons a um relato palpável e comovente.

3/5

LES HIRONDELLES DE KABOUL.jpeg

"LES HIRONDELLES DE KABOUL", de Eléa Gobbé-Mévellec e Zabou Breitman: Tal como "A Ganha-Pão", esta é uma história ancorada na capital do Afeganistão, durante a ocupação talibã, mas será uma proposta menos aconselhável para toda a família. O nível de violência - psicológica e gráfica - atinge outros patamares e o retrato é bem mais pessimista, ao mergulhar num sistema opressivo que deixa a maioria das personagens num beco sem saída, e com apenas uma réstia de esperança à tona. O desenho de uma comunidade submetida à violência (especialmente sentida pelo sexo feminino) parte dos dilemas de dois casais: um mais jovem, liberal e optimista, que vai encontrando na arte um escape para uma realidade conturbada; e outro de meia-idade, composto por um guarda prisional resignado e uma mulher que luta contra um cancro sem grande apoio do marido. O argumento, baseado no romance homónimo de Yasmina Khadra (editado em 2002), encarregar-se-á de cruzar os destinos destes quatro protagonistas, numa jornada de culpa e redenção, mudança e sugestões de segundas oportunidades, tornada singular pela parceria entre Breitman (realizadora de "O Homem da Sua Vida" ou da série "Paris etc", a estrear-se aqui na animação) e Gobbé-Mévellec (na sua primeira experiência como realizadora depois de um percurso nas artes gráficas). A singularidade reflecte-se na narrativa, capaz de acolher uma ambiguidade moral considerável (sobretudo nas personagens masculinas), e na vertente visual, com um estilo a remeter para a pintura com aguarelas. E resulta num filme tão angustiante como belo, merecidamente premiado no Festival de Animação de Annecy em 2018 e nomeado para a secção Un Certain Regard, em Cannes, este ano.

3,5/5

Wardi.jpg

"WARDI", de Mats Grorud: Primeira longa-metragem de um realizador norueguês que tinha despertado atenções nas curtas, este drama denuncia esse passado ao insistir numa estrutura episódica, com várias histórias dentro de um quadro geral. Mas essa opção será mais feitio do que defeito de um filme ambicioso e refrescante, que investe numa saga familiar ao longo de quatro gerações de palestinianos obrigados a procurar abrigo num campo de refugiados no Líbano. Poderá acusar-se Grorud de dar um retrato apenas parcial do conflito israelo-árabe, filtrado pelo olhar de uma menina de ascendência palestiniana que vai conhecendo as origens dos seus familiares (e levando o espectador nessa descoberta, que é também um adeus progressivo à inocência). Só que o realizador está mais interessado em dar conta dos traumas da guerra, e das várias e diversas repercussões que podem ter, do que propriamente em levantar qualquer bandeira. "Só odeio os israelitas que nos querem matar", diz a tia da protagonista a certa altura, num dos desabafos que demoverão quem quiser encontrar aqui tentações panfletárias. Por outro lado, não falta empatia pelas vítimas de um conflito sem fim à vista, ancorado em estudos de personagem que conciliam amargura, resiliência e cumplicidade. Esse humanismo sai a ganhar por um cruzamento invulgar de animação (tanto de stop motion como 2D) e imagem real (de base documental), conjugação que nunca passa por ostensiva e revela critério na escolha de cada técnica. Nada mal para uma estreia nas longas-metragens...

3,5/5

"LES HIRONDELLES DE KABOUL" e "WARDI" fazem parte da programação da 20.ª edição da FESTA DO CINEMA FRANCÊS.