Leonardo Sbaraglia e Valeria Bruni Tedeschi interpretam duas das personagens mais exasperantes da 26.ª edição do QUEER LISBOA, a decorrer no Cinema São Jorge e na Cinemateca. Mas também são duas grandes forças motrizes de dramas no fio da navalha, a honrar a tradição realista argentina e francesa, respectivamente.
"ERRANTE CORAZÓN", de Leonardo Brzezicki: O caminho de Santiago, protagonista da segunda longa-metragem do autor de "Noche" (que passou no Queer Lisboa há quase dez anos), parece ser o da autodestruição. Incapaz de se conformar com uma separação amorosa, o homem no centro deste drama argentino atravessa uma crise de meia-idade que vai somando episódios extremos, às vezes humilhantes, nascidos de uma mistura tóxica de solidão, angústia e uma cedência recorrente ao impulso.
Baseando-se em parte em algumas fases da sua vida, sem fazer deste um relato autobiográfico, e tendo a obra de John Cassavetes entre as inspirações assumidas, Brzezicki deixa um olhar dorido sobre o quotidiano de um pai solteiro homossexual desesperadamente à procura do amor, numa viagem entre Buenos Aires e o Rio de Janeiro captada com uma sensibilidade à flor da pele (da fotografia granulada ao fulgor realista com recurso à câmara à mão).
Santiago pode não ser o que se consideraria uma pessoa fácil, mas Leonardo Sbaraglia ("Intacto", "Dor e Glória") é irrepreensível a traduzir o turbilhão no centro deste protagonista tão inquietante como comovente, capaz de aliar delírio e romantismo, vulnerabilidade e tensão, sem cair no overacting nem numa colecção de trejeitos. Já o realizador honra a sua entrega notável com um retrato vívido e adulto, filmando a nudez física e emocional sem pudores mas também sem provocações fáceis, mesmo que a meta narrativa desta jornada circular não esteja muito distante do ponto de partida - o que talvez nem seja um defeito, antes feitio obstinadamente realista.
3,5/5
"LA FRACTURE", de Catherine Corsini: Raphaëlle é egocêntrica, teimosa, tagarela, muitas vezes truculenta e manipuladora, mas na pele de Valeria Bruni Tedeschi também nunca perde uma candura que a torna mais suportável do que parecia à partida. E é por ela, e pela sua dilaceração amorosa (a sua companheira de longa data garantiu deixá-la de vez), que este drama cruzado com farsa e comédia burlesca começa por se interessar.
Só que quando a protagonista se vê obrigada a passar uma noite nas urgências de um hospital parisiense, o mais recente filme da autora de "Partir" (2009) ou "Un amour impossible" (2018) ganha outros contornos. E sobretudo outra ambição, ao ir acentuando a carga realista enquanto se debruça sobre as conturbadas manifestações dos "coletes amarelos" ou na fragilidade preocupante do Sistema Nacional de Saúde francês (Portugal não é, infelizmente, caso único).
A fractura do título não se limita, portanto, ao braço partido que leva Raphaëlle ao hospital, mas aos muitos contrastes e conflitos que Corsini vai colocando em cena, nem sempre de forma muito subtil mas com uma clara vontade de medir o pulso às assimetrias sociais do seu país - e ao refúgio tentador no preconceito ou no radicalismo. Apesar do choque de realidade que a narrativa vai desenhando, a realizadora nunca abdica do humor e equilibra-o de forma surpreendentemente fluída com acessos dramáticos - e Tedeschi é muito boa a atirar-se (às vezes de forma literal) a esse registo.
Mas é pena que o resultado não seja tão conseguido numa última meia-hora que peca pelo excesso, juntando ao histerismo e histrionismo da protagonista uma acumulação de imprevistos e reviravoltas que, mesmo sendo verosímeis, se limitam a sublinhar o que já tinha ficado claro ou a cair em simplismos ocasionais (caso da abordagem questionável à doença mental e à dependência).
Ainda assim, nem aí este relato conjugal tornado filme de cerco deixa de ser no mínimo muito curioso, tendo o coração no sítio certo - esta é, também, uma homenagem ao esforço hercúleo dos profissionais de saúde - e um grupo de personagens e actores estimulante - além de Tedeschi, aplaudam-se Marina Foïs, Pio Marmaï e a estreante Aïssatou Diallo Sagna, justíssima vencedora do César de Melhor Actriz Secundária este ano ao encarnar uma enfermeira dedicada exposta a fracturas diárias.
O QUEER LISBOA 26 abre portas esta sexta-feira, 16 de Setembro, numa edição que leva 87 filmes de 27 países ao Cinema São Jorge e à Cinemateca até dia 24. Para início de percurso, ficam por aqui cinco sugestões.
"Foto-Fátuo", o novo filme de João Pedro Rodrigues, tem honras de inauguração do 26.º ano do festival que nos próximos dias desafia o público pensar na construção do conceito 'queer', tanto no passado como no presente. O encerramento faz-se com "Esther Newton Made Me Gay", da norte-americana Jean Carlomusto, sobre a antropóloga social e activista lésbica Esther Newton.
Pelo meio, há espaço para dezenas de apostas de vários géneros, origens e formatos, através das já habituais secções Longas, Curtas, Documentários, Panorama, "In My Shorts" e Queer Art, num ano que traz de volta as Hard Nights (dedicadas a dois nomes da produção de obras explícitas, Fred Halsted e Mahx Capacity).
A retrospectiva "Notes on Camp: o Delírio Drag do Gay Girls Riding Club" recorda o colectivo que começou a parodiar o cinema de Hollywood nos anos 1960 e entre as actividades paralelas há lançamentos de livros, festas ou a apresentação da campanha "Eu sou VIH+ e visível".
Como começar a escolher o que ver ao longo de uma semana pode ser um desafio exigente, ficam por aqui cinco sugestões que prometem valer a descoberta nos primeiros dias:
"JOYLAND", de Saim Sadiq: Vencedor do Prémio do Júri da secção Um Certain Regard e da Queer Palm no Festival de Cannes deste ano, esta primeira longa-metragem de um realizador com várias curtas no currículo troca as expectativas a uma família paquistanesa (que partilha a nacionalidade com o autor) que esperava ter no seu único filho a garantia da descendência natural do clã. Mas as coisas complicam-se quando este se apaixona por uma bailarina trans de um teatro de dança erótica no qual trabalha à revelia dos pais, obrigando todos a reconsiderar o seu papel.
Sábado, 17 de Setembro, às 22h00, no Cinema São Jorge - Sala Manoel de Oliveira
"WET SAND", de Elene Naveriani: Depois de ter tido em "And Then We Danced", de Levan Akin, um olhar memorável sobre a opressão na Geórgia há uns anos, o festival propõe outro retrato conterrâneo de vidas marginais e silenciadas. O segundo drama da realizadora de "I Am Truly a Drop of Sun on Earth" (2017) é uma viagem a uma pequena localidade na costa do Mar Negro que arranca com a chegada da neta de um homem encontrado enforcado. A procura de respostas acaba por desvendar um novelo de segredos e mentiras da comunidade, rastilho para que se imponha o realismo cru associado à autora.
Domingo, 18 de Setembro, às 19h00, e quarta, 21 de Setembro, às 16h00, no Cinema São Jorge - Sala Manoel de Oliveira
"ERRANTE CORAZÓN", de Leonardo Brzezicki: Revelação do Queer Lisboa há quase dez anos, com o intrigante "Noche" (2013), o realizador argentino está de volta com aquela que é apenas a sua segunda longa-metragem (pelo meio houve uma curta). E este drama parece substancialmente diferente do objecto quase inclassificável (mas muito promissor) que o festival exibiu antes, ao seguir por uma narrativa mais linear ancorada no quotidiano de um pai solteiro homossexual que tenta lidar com uma separação conturbada e o afastamento da filha. Leonardo Sbaraglia, que encarna o homem à beira de um ataque de nervos depois de ter passado por "Dor e Glória", de Pedro Almodóvar, ou "Intacto", de Juan Carlos Fresnadillo, é um motivo adicional para juntar este filme à lista.
Domingo, 18 de Setembro, às 22h00, no Cinema São Jorge - Sala Manoel de Oliveira
"SEGUINDO TODOS OS PROTOCOLOS", de Fábio Leal: Como ter relações sexuais sem deixar de cumprir à risca as medidas de segurança da COVID-19? A tentativa de resposta levou a um dos filmes com uma das premissas mais curiosas desta edição do festival e dos que espelham mais directamente a experiência da pandemia. Primeira longa-metragem do realizador, argumentista e actor que dirigiu o documentário "Deus Tem AIDS" (2020) ao lado de Gustavo Vinagre (cujo novo drama, "Três Tigres Tristes", também pode ser visto no Queer Lisboa deste ano), é uma oportunidade de descobrir aquela que começa a impor-se como uma das vozes inconformadas do novo cinema brasileiro.
Segunda, 19 de Setembro, às 22h00, e quinta, 22 de Setembro, às 16h00, no Cinema São Jorge - Sala Manoel de Oliveira
"LOS AGITADORES", de Marco Berger: O autor de "Ausente" ou "Taekwondo" tem sido das apostas recorrentes do Queer Lisboa desde a sua primeira longa-metragem ("Plan B", de 2009) e encontra no festival a sua montra privilegiada nas salas portuguesas. O novo filme do argentino não foge à regra e assinala o seu regresso à ficção depois das três experiências documentais que se seguiram a "El Cazador", de 2020. Mais uma vez concentrando-se no universo masculino e nas relações de cumplicidade entre jovens adultos, traz o retrato das férias de Natal de um grupo de amigos na casa do protagonista, do qual se espera a mistura de provocação, voyeurismo e ambiguidade que tem sido marca da obra de Berger.
Terça, 20 de Setembro, às 22h00, no Cinema São Jorge - Sala Manoel de Oliveira