Corre, Julie, corre
Um dos filmes mais frenéticos da temporada não precisa de grandes truques para desenhar um thriller tão empolgante como angustiante: basta-lhe o caos do dia a dia urbano. Vale a pena correr para apanhar nas salas "A TEMPO INTEIRO", de Eric Gravel.
Julie trabalha das 9 às 5, ou num horário próximo desse modelo mais habitual para muitos, mas a rotina laboral arranca bem mais cedo e termina consideravelmente mais tarde. A trabalhar em Paris e a viver nos arredores, esta mãe de dois filhos (praticamente deixados a seu cargo pelo ex-companheiro) na casa dos 40 vive uma aventura diária para conseguir manter o trabalho num requintado hotel da capital francesa, mesmo que esse esteja longe de ser o seu emprego de sonho (tem um mestrado em Economia).
Se o equilíbrio da vida profissional e familiar já é agitado por si só, o cenário complica-se quando uma greve geral compromete a circulação dos transportes públicos e torna qualquer planeamento de deslocação para a cidade uma incógnita, para não dizer um suplício. E acontece numa semana decisiva para a protagonista de "A TEMPO INTEIRO": aquela em que foi chamada para uma entrevista de emprego numa área mais aliciante.
Centrado, desde os primeiros minutos, na fuga para a frente (e sem fim à vista) de uma mulher à beira de um ataque de nervos, a segunda longa-metragem de Eric Gravel (sucessora de "Crash Test Aglaé", de 2017, sem estreia comercial em Portugal) revela o franco-canadiano como um hábil gestor do ritmo e do suspense, partindo de territórios do realismo social rumo aos do thriller. O savoir faire é evidente, da sequência (repetida) em que a protagonista acorda depois de um pesadelo sem ter muito tempo para pensar nele à precisão de relojoeiro suíço com que vão sendo colocados obstáculos nesta maratona extenuante.
Gravel está bem acompanhado: tanto a montagem de Mathilde Van de Moortel ("Mustang") como a banda sonora de Irène Drésel (um dos nomes-chave da nova música electrónica francesa) contribuem muito para a atmosfera tensa e nervosa que percorre o filme premiado no Festival de Veneza e nos Césares. E depois há, claro, outra mulher essencial para que tudo resulte: Laure Calamy, actriz mais associada a papéis cómicos (como o do simpático "O Meu Burro, o Meu Amante e Eu", de Caroline Vignal), mas aqui a impor-se num desafio ao qual não falta vertigem dramática. Afinal, é a ela que a câmara se agarra obsessivamente num exercício que não se esgota no estilo: o realizador, que também assina o argumento, integra um quotidiano em alta voltagem numa visão inquieta sobre o preço a pagar pelo triunfo do capitalismo.
Felizmente, Gravel não faz esse retrato à custa de maniqueísmos óbvios que tornam as personagens em bandeiras ideológicas: nem a protagonista é imune a falhas morais, mesmo que a sua situação desperte a empatia do espectador, nem há antagonistas facilmente identificáveis nesta luta diária. Uma escrita socialmente engajada e menos perspicaz tenderia a demonizar as chefias, os rostos mais visíveis do "sistema" e do acumular desnorteante de objectivos, mas "A TEMPO INTEIRO" sugere que tanto a chefe de Julie como a coordenadora que a entrevista (curiosamente, ambas mulheres) sofrem as suas próprias pressões... embora talvez não inspirassem um filme tão propulsivo e absorvente.
3,5/5