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Muitos discos, alguns filmes, séries e livros de vez em quando, concertos quando sobra tempo

Muitos discos, alguns filmes, séries e livros de vez em quando, concertos quando sobra tempo

Amor de mãe (num Brasil onde não brilha o sol)

É uma das boas surpresas do cinema brasileiro actual e vem confirmar Carolina Markowicz como uma realizadora a seguir: estudo da relação entre uma mãe e um filho ameaçada pelo preconceito, "PEDÁGIO" encontra um lugar particular nas narrativas queer e da entrada na idade adulta.

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"Seria incapaz de amar um filho homossexual. Não vou dar uma hipótese hipócrita aqui: prefiro que ele morra", proferiu Jair Bolsonaro numa das várias declarações feitas antes, durante e depois de ocupar o cargo de presidente brasileiro que apelaram à legitimação da homofobia - e logo num país em que o homicídio de pessoas trans bate recordes mundiais.

Carolina Markowicz não tem escondido que a coprodução luso-brasileira "PEDÁGIO" é, em parte, uma reacção às mensagens de ódio que se têm intensificado contra a comunidade LGBTQIA+ dentro e fora de portas, à medida que a extrema-direita alarga a sua influência de forma assustadora. Mas felizmente, a sua segunda longa-metragem (sucessora da elogiada "Carvão", de 2022, que não teve distribuição comercial em Portugal) escapa quase sempre às armadilhas do panfleto filmado.

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O cinema sobrepõe-se à militância e este drama, que chegou a ser considerado para candidato a Óscar de Filme Internacional ("Retratos Fantasmas", de Kleber Mendonça Filho, acabou por ser representante brasileiro) é, sobretudo, um estudo de personagens centrado na relação conturbada entre uma mãe (que trabalha numa portagem, ou "pedágio", como se diz no Brasil) e um filho, no qual primeira não só não aceita a homossexualidade do segundo como o inscreve numa terapia de conversão. 

Ambientado em Cubatão, pequena localidade nos arredores de São Paulo cujo perfil industrial, poluído e turvo se aproxima de um cenário de ficção científica pós-apocalíptica (a fotografia suja e granulada de Luís Armando Arteaga ajuda), este mergulho invulgar num Brasil nada soalheiro e veraneante tem o mérito de não demonizar a progenitora e de não fazer do adolescente ostracizado uma mera vítima das circunstâncias, fugindo também a tentações de miserabilismo social. E oferece várias cenas, tão verosímeis como tocantes, que dão conta do amor mútuo que marca a convivência neste núcleo familiar, apesar do fosso que dá rastilho ao filme.

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Hábil directora de actores, Markowicz dificilmente poderia ter escolhido melhor do que Maeve Jinkings e Kauan Alvarenga para encarnarem os protagonistas, ela a viver uma mãe disposta a tudo pelo filho, mas incapaz de combater imposições sociais e religiosas, ele a conjugar doçura, insolência e força, num percurso de emancipação sem deixar a mãe para trás. O sempre confiável Thomas Aquino ("Deserto Particular", "Boca a Boca", "Bacurau"), num papel secundário mas decisivo, e Aline Marta Maia, a garantir os momentos mais espirituosos, são outros alicerces de um elenco sólido.

O argumento, no entanto, nem sempre apresenta a mesma solidez quando sai da esfera doméstica para a das reuniões da terapia de conversão. Nessas cenas, o realismo dá lugar à sátira e "PEDÁGIO" sublinha o que já era óbvio, numa denúncia simplista do preconceito, ignorância e hipocrisia. A personagem do pastor, interpretada pelo português Isac Graça, ressente-se disso, ao nunca conseguir escapar à caricatura - o filme sairia, provavelmente, a ganhar caso lhe permitisse a complexidade que confere às outras personagens.

Por outro lado, o desenlace, depois de uma passagem tão inesperada como escorreita pelo thriller, é um achado ao não oferecer soluções fáceis para a dinâmica de rejeição e validação na qual assenta a cumplicidade dos protagonistas. A última sequência entrega tudo aos silêncios e olhares de Jinkings e Alvarenga e eles dizem tudo o que ficou por dizer, num dos finais "em aberto" mais perspicazes, (apropriadamente) ambíguos e arrebatadores dos últimos tempos.

3,5/5

Dança, fuga e luta, de Paris a Nova Iorque (ou entre fronteiras)

Da Áustria, EUA ou Suécia chegaram alguns dos filmes mais celebrados do QUEER LISBOA 27. Descobertas a reter numa altura em que o QUEER PORTO regressa à Invicta até dia 14.

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"LA BÊTE DANS LA JUNGLE", de Patric Chiha: Apesar de qualidades evidentes (direcção artística e guarda-roupa de encher o olho, a fotografia sumptuosa de Celine Bozon), o filme escolhido para a sessão de abertura do QUEER LISBOA deste ano não foi dos mais memoráveis.

Adaptação do romance "The Beast in the Jungle" (1903), de Henry James, a nova obra do realizador de "Si c’était de l’amour" (2019) transfere a acção do Reino Unido para França, acompanhando as noites partilhadas pela dupla de protagonistas num clube underground parisiense ao longo de 25 anos, entre 1979 e 2004.

Enigmático e envolvente na primeira metade, sobretudo pela carga sensorial já aplaudida noutros títulos do cineasta austríaco, é um olhar que se vai esgotando quando a longa espera das personagens principais por um acontecimento extraordinário se encaminha para uma reflexão existencial e melancólica que, não sendo desinteressante, se arrisca a ser antecipada pelo espectador.

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Também não ajuda que a direcção de actores seja desigual: se Anaïs Demoustier nunca deixa de ser uma presença forte e persuasiva, Tom Mercier oferece uma interpretação tão plana como apática, e talvez o filme saísse a ganhar caso o argumento se debruçasse mais sobre figuras secundárias, como a porteira a cargo da veterana Béatrice Dalle (sempre inquietante).

A cápsula temporal da narrativa é curiosa, até por ir apontando alguns eventos-chave (da crise da sida à queda do Muro de Berlim) em paralelo com a evolução das tendências de música de dança (do disco à synthpop, da house ao techno) e da moda (do fausto dos anos 80 ao despojamento da viragem do milénio) a partir da pista da discoteca. Só é pena que esse retrato do hedonismo e escapismo, captado com um fulgor estético assinalável, não tenha ressonância emocional à altura num drama tão esbatido - e que foi, incompreensivelmente, o único título apresentando em antestreia nesta edição do festival.

2,5/5

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"MUTT", de Vuk Lungulov-Klotz: Tão realista como humanista, este drama ambientado em Nova Iorque foi das melhores surpresas do QUEER LISBOA 27. Primeira longa-metragem de um realizador que já contava com três curtas, mergulha na vida atribulada de um rapaz trans de ascendência chilena durante 24 horas especialmente intensas, marcadas por três encontros decisivos: com o ex-namorado, com a meia-irmã e com o pai.

Reflexão sensível sobre a identidade, consegue abordar a transfobia ou a fase pós-transição sem simplificações, evitando reduzir as personagens a estereótipos. E nem o facto de o realizador estar claramente do lado do protagonista faz com que ostracize outras figuras que este por vezes confronta, destacando-se também pelas nuances no retrato de dois homens cisgénero que marcam esta jornada pessoal.

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O que se perde em militância ganha-se, felizmente, em ambiguidade, traduzida em algumas sequências de um intimismo precioso: as que se debruçam sobre a possibilidade de reatar uma relação amorosa são das mais conseguidas e tocantes, aliando a singularidade temática às interpretações justas de Lio Mehiel (premiada em Sundance) e Cole Doman.

Lungulov-Klotz, realizador e escritor trans criado entre o Chile, os EUA e a Sérvia, filma os corpos sem pruridos nem gestos gratuitos (caso de uma reveladora cena numa lavandaria), tem uma visão empática sem deixar de ser crua e afirma-se aqui como um nome a seguir com atenção. Mas esperemos que não fique restrito ao circuito dos festivais (depois de também ter sido distinguido em Berlim), porque este cinema queer merece mais salas...

3,5/5

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"OPPONENT", de Milad Alami: Vencedora do Prémio do Público do QUEER LISBOA e também distinguida com uma menção especial do júri (que premiou o igualmente meritório "Regra 34", de Julia Murat), a segunda longa-metragem do realizador sueco nascido no Irão e radicado na Dinamarca é ainda a candidata à nomeação ao Óscar de Melhor Filme Internacional pela Suécia. E boa parte destas atenções (ou das várias nomeações no Festival de Berlim) terão sido motivadas pelo desempenho de Payman Maadi, o excelente actor de "Uma Separação" ou "A Lei de Teerão", que aqui mantém esse patamar enquanto confirma a versatilidade.

Com uma interpretação mais circunspecta e implosiva do que as que o ajudaram a fazer-se notar fora de portas, mais ancorada em silêncios (e nos olhares e na linguagem corporal) do que na profusão de diálogos, o iraniano eleva um sólido estudo de personagem vincado pelo realismo social, centrado no patriarca de uma família sua conterrânea refugiada numa pequena localidade sueca. O protagonista viu-se obrigado a sair do país natal devido a um segredo que este drama demora o seu tempo a revelar, colocando em jogo um contraste cultural atravessado pela angústia e o medo, o desejo e a repressão ou conceitos de masculinidade.

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Se nas linhas gerais do argumento este retrato não se afasta assim tanto de outros sobre homofobia internalizada, o contexto e a atenção que Alami dá aos detalhes são suficientemente interessantes para ultrapassar essas limitações (ou um final um tanto abrupto). Além, claro, de um actor que é certamente dos mais magnéticos vistos nesta edição do QUEER LISBOA, acompanhado por um elenco que também merece elogios - sobretudo Marall Nasiri, que atribui à mulher do protagonista uma subtileza e generosidade muito bem-vindas.

O realizador valoriza esse empenho, esmera-se em alguns episódios de antologia (um especialmente tocante com uma actuação ao piano, outro uma sequência onírica, além de flirts entre luta livre e homoerotismo) e justifica o entusiasmo que o sucessor do já aplaudido "The Charmer" (2017) tem despertado. Como outras apostas do festival, é das que parecem ter tudo para chegar a um público mais vasto - assim as distribuidoras o permitam ou comecem por reparar nele...

3,5/5