E ao terceiro disco, LETRUX trocou os prantos pandémicos pelas aventuras na selva. "LETRUX COMO MULHER GIRAFA" é o novo capítulo de um dos percursos mais vibrantes da música brasileira dos últimos anos e traz outros focos temáticos sem mudar de modo tão vincado o ADN sonoro.
Dedicado à recentemente falecida Rita Lee ("uma mulher girafa especial em minha vida", confessa a cantora, compositora, actriz e escritora carioca) e tendo a leitura do clássico "O Triunfo dos Porcos", de George Orwell, entre as inspirações, o sucessor de "Letrux em Noite de Climão" (2017) e "Letrux aos Prantos" (2020) é uma viagem ao reino animal conjugada com o olhar peculiar sobre as relações humanas que a sua autora partilha desde os dias de Letuce, dupla que criou com Lucas Vasconcellos.
Com produção esmerada de João Brasil, que já tinha sido cúmplice de "Estilhaça" (2015), o derradeiro registo da antiga banda de Letícia Novaes, o álbum recupera orgulhosamente a alcunha de girafa, que a artista ouviu demasiadas vezes na infância e adolescência (de forma não necessariamente elogiosa), tornando-a no ponto de partida de um encontro que inclui ainda leões, hienas, aranhas, galinhas, cobras ou abelhas.
Às primeiras audições, no entanto, sobressaem "Zebra", colaboração contagiante com Lulu Santos cuja folia disco que remete para a fase "Climão", ou a mais implosiva "Crocodilo", cantada em inglês, com sussurros numa atmosfera que junta synth-pop de alma new romantic e percussão tropical, a meio caminho entre os Visage e os conterrâneos Tetine.
Embora marque um capítulo certamente distinto nesta obra, a temática animal também parece limitar os horizontes líricos em alguns momentos (ouça-se "Abelha", tão insinuante como abstracta) e o excesso de interlúdios talvez não convide a muitas audições na íntegra (apesar de pontuais esboços promissores como "{Intervalo da pantera megera}"). Mas fica a curiosidade de ver (e ouvir) como é que estas canções vão transitar para um palco, território que LETRUX já provou saber ocupar com mestria e carisma - cenário testemunhado em salas nacionais este ano, caso da sucessão de noites memorável no Musicbox Lisboa, ou no Festival Músicas do Mundo no Verão passado.
Outra particularidade deste terceiro álbum é a de ter sido anunciado com pouquíssimo tempo de antecedência, e sem direito a singles de avanço. O cartão de visita, "AS FERAS, ESSAS QUERIDAS", chegou com a edição do disco, a 30 de Junho, e impõe-se como a maior pérola do alinhamento, na qual tudo na nova abordagem selvagem (e com sacanagem, realça a letra) faz sentido. Psicadélica, tribal e febril, com teclados, sintetizadores e percussão em disputa animalesca, é uma das grandes canções deste Verão - e muito bem defendida por um videoclip que acompanha esse rasgo, assinado por LETRUX e Katja Täubert:
"A gente já esteve aqui", cantou LETRUX esta quarta-feira, 19 de Abril, numa noite no Musicbox Lisboa esgotada há meses. E poucas vezes essa constatação de "Déjà Vu Frenesi" terá feito tanto sentido: a brasileira actuou duas vezes no mesmo dia na sala do Cais do Sodré, onde também já se tinha apresentado na terça, noutro concerto com casa cheia. No final, só lhe faltou dizer "A gente vai voltar aqui"... mas essa certeza ficou mais do que implícita.
Num muito bem-sucedido regresso a Portugal (onde tinha deixado óptimas memórias no ano passado), que também inclui espectáculos no Porto e em Coimbra, a autora de "Letrux em Noite de Climão" (2017) e "Letrux aos Prantos" (2020) não regressou com um novo disco, mas antes com um documentário, "Letrux: Viver é um Frenesi", que motivou uma sessão no Cinema Ideal, em Lisboa, esta quinta-feira, e também pode ser visto gratuitamente no site do Sesc Digital (e só peca por ser tão curto, com pouco mais de 30 minutos de duração).
Uma das cenas mais reveladoras do filme de Marcio Debellian, que percorre a infância e adolescência de Letícia Novaes mas também a fase da pandemia, é quando a cantora, compositora, actriz e escritora carioca explica a origem do seu nome artístico, associando-a ao verbo "to let", em inglês. "Eu me permito", confidencia, e essa liberdade já evidente nos discos de horizontes bem abertos também percorreu um concerto que, tal como o documentário, cruzou tempos e referências, paixões e recordações.
Apostando num formato intimista, acompanhada de apenas dois músicos (Arthur Braganti nos teclados, guitarra e segunda voz boa parte do concerto, Pedro Colombo em participações pontuais na guitarra), LETRUX conjugou originais e versões, homenageando figuras marcantes do seu percurso numa viagem de quase hora e meia que foi da MPB à synth-pop, do rock de contornos indie a acessos flamenco.
Pelo caminho, entre recortes de fases da sua vida, permitiu-se até abraçar clichés de peito aberto, caso da interpretação do clássico/património brasileiro "Águas de Março", episódio inicialmente traído por problemas técnicos quando uma guitarra insistiu em não colaborar.
Também se deu ao luxo de incluir uma espécie de intervalo publicitário, com o humor como trunfo, para promover a venda de sungas inspiradas no imaginário dos álbuns, ou de dispensar o encore, oferecendo as últimas canções depois de pedir ao público que imaginasse a sua saída e regresso a palco.
Partindo das palavras de gente tão diferente como William Shakespeare (num breve e eloquente monólogo inaugural) ou Clarice Lispector e revisitando canções de luminárias conterrâneas como Marina Lima, Rita Lee, Barão Vermelho ou Caetano Veloso, ofereceu ainda uma das versões mais inesperadas ao recordar "Take My Breath Away", dos norte-americanos Berlin, dando uma cama de teclados e um tom mais espacial ao tema-chave de "Top Gun" (a sua escolha musical para o seu eventual casamento, ficámos a saber) e levando um céu estreado ao Musicbox, numa das opões cénicas mais conseguidas, provando que a limitação de recursos não tem de comprometer a criatividade.
O seu cabelo, por exemplo, foi todo um programa e valeu por um par de adereços ou trocas de guarda-roupa. Praticamente mutante de canção para canção, esvoaçante ou apanhado de várias formas, foi igualmente expressão de uma liberdade que também passou pela forma solta, e ao mesmo tempo teatral, com que a carioca se atirou a canções de terceiros. Fica-se com a ideia de que poderia cantar qualquer coisa, não só pelos méritos vocais mas tanto ou mais pela capacidade performativa total, onde cada gesto ou olhar conta - como contam as intervenções e apartes tendencialmente espirituosos a meio das canções ou entre elas.
"Essa canção é dedicada à tradicional família brasileira sapatã", disse antes de "Que Estrago", um dos temas mais fulminantes do disco de estreia. "Ou à tradicional família portuguesa fufa", acrescentou. Do seu catálogo, brilharam ainda a confissão bilingue "I'm Trying to Quit", as sempre tocantes "Dorme com Essa" (a alusão a Lisboa não passou despercebida e foi dos momentos mais celebrados) e "Cuidado Paixão" ou as festivas "Flerte Revival" e "Me Espera", potentes disparos de adrenalina no final.
Tivemos frenesim, climão e alguns prantos, temos decididamente um novo fenómeno por cá.
Nota: as fotos deste post são do concerto de 18 de Abril