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gonn1000

Muitos discos, alguns filmes, séries e livros de vez em quando, concertos quando sobra tempo

Muitos discos, alguns filmes, séries e livros de vez em quando, concertos quando sobra tempo

Dias de um passado bem lembrado (e reinventado)

Faz sentido continuar uma série de animação infantojuvenil quase 30 anos depois de ter terminado? "X-MEN '97", a nova aposta do Disney+, sugere que sim: a nostalgia pode ter dado o mote, mas estas aventuras dos super-heróis mutantes da Marvel são tão prementes em 2024 como na década de 90 (e o genérico inicial ainda é dos mais trepidantes que já passaram pelo pequeno ecrã).

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Para muitos a principal porta de entrada para os X-Men, mais do que as revistas de BD (que chegaram décadas antes) ou os filmes de imagem real (que viriam anos depois), a primeira série de animação, homónima, da equipa liderada por Charles Xavier não será uma memória estranha a quem viveu a infância ou a adolescência na década de 90.

Emitida em Portugal pela SIC, nas tardes entregues a "Buéréré" (outros tempos, de facto), a criação da FOX durou cinco temporadas (nos EUA, foi transmitida entre 1992 e 1997) e adaptou algumas das histórias mais icónicas dos super-heróis mutantes da Marvel dos comics para a TV. Ainda está para surgir no cinema uma versão tão conseguida da saga da Fénix como a que se viu ali, ou da dinâmica das (muitas) personagens da equipa - e em alguns casos, dos seus traços de personalidade -, mérito da forma como a série se manteve fiel ao ADN do que os X-Men representam.

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Daí a pensar voltar ao lugar onde se foi feliz, através de uma nova produção, ainda vai alguma distância. Mas é essa a proposta de "X-MEN '97", 27 anos depois do final da quinta temporada da série original, agora desenvolvida pela Marvel Studios Animation, disponível no Disney+ e com Beau DeMayo ("The Witcher") no comando. E nem é preciso ver toda a primeira temporada (de dez episódios) para perceber que o criador e argumentista, embora tenha sido despedido poucas semanas antes da estreia, sabe como poucos do que está a falar e para quem fala.

Este regresso e recomeço é tanto para novos espectadores, não necessariamente de uma faixa infantojuvenil, como (e sobretudo?) para uma legião de adultos que acompanhou as temporadas anteriores. Assim o têm comprovado as muitas e entusiastas reacções aos primeiros episódios (já há três que podem ser vistos no Disney+) em várias avenidas online, expressando um aplauso consensual, ou bem perto disso, tanto da crítica como do público.

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Percebe-se porquê: o arranque de "X-MEN '97" é tão certeiro a manter uma trama telenovelesca (no melhor sentido), a partir das relações conturbadas entre os membros da equipa, como a vincar um olhar singular (em especial dentro do universo dos super-heróis) sobre a diferença, a intolerância e a opressão. Apesar de a abordagem ao preconceito também ter estado no centro da maioria dos filmes dos mutantes, a série consegue trazer um sentido de urgência renovado face à realidade política e social de 2024. Dificilmente será coincidência que um dos momentos do segundo episódio lembre o ataque ao Capitólio dos EUA, em 2021. E uma organização de cidadãos revoltados (os Amigos da Humanidade, já presente na série original) tem semelhanças assustadoras com partidos de extrema-direita que querem "limpar o país".

Marcada por um ritmo acelerado e animação 2D (parcialmente desenhada à mão) mais fluída do que a da série original, "X-MEN '97" cruza logo várias sagas da BD nos três capítulos iniciais e é particularmente bem-sucedida nos primeiros dois. O facto de já não contar com Charles Xavier obriga a uma dinâmica diferente, que dá mais protagonismo ao casal Ciclope e Jean Grey. Ele, intrépido e carismático como nunca tinha sido antes, e ela, grávida e com direito a um diálogo de antologia com Tempestade sobre as inquietações de ser mãe, afirmam-se como centro narrativo e emocional de uma história com outros pilares em Magneto, a tentar a jornada de vilão para herói, ou do brasileiro Roberto da Costa, cara familiar da BD (onde se tornou o super-herói Mancha Solar) mas personagem recém-chegada a estas paragens, cumprindo (e bem) o papel de guiar novos espectadores como Jubileu fez antes.

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O transmorfo Morph e o viajante no tempo Bishop são outras novidades da galeria de protagonistas, embora o primeiro tenha, para já, mais destaque do que o segundo - seja pela cumplicidade com Wolverine ou pelo papel de easter egg ambulante (e às vezes delirante), distribuindo fanservice nas doses certas (as piscadelas de olho aos conhecedores são complementos ou curiosidades da narrativa e não o oposto, felizmente). 

"X-MEN '97" só trai parte da óptima primeira impressão quando tenta juntar demasiado, no terceiro episódio. Concentrando em apenas meia-hora anos de acontecimentos da cronologia da BD e focando-se numa das suas sagas mais emblemáticas (que juntou os X-Men ao X-Factor e Novos Mutantes), acaba por limitar o potencial de uma história que ganharia com maior fôlego (tal como a saga da Fénix ganhou, lá está, na animação dos anos 90). E até corre o risco de se tornar confusa para quem nunca leu aventuras dessa fase, por muito que o imaginário do terror seja bem incorporado ou que não faltem momentos de respeito óbvio pelas personagens. Nada que não possa ser compensado quando o final deixa pistas para a adaptação de um dos arcos definidores de Tempestade - de preferência, sem pressa de passar logo ao seguinte...

"X-MEN '97" estreou-se no Disney+ a 20 de Março. A plataforma de streaming estreia novos episódios todas as quartas-feiras.

O favorito do rei

Uma Julianne Moore disposta a tudo, incluindo usar o filho como moeda de troca no elevador aristocrático? Não está mal como premissa de uma farsa viperina de época. E os dois primeiros episódios de "MARY & GEORGE", nova minissérie da SkyShowtime, defendem-na com ironia e manobras de sedução q.b..  

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Qualquer semelhança de "MARY & GEORGE" com a realidade não será pura coincidência: o drama criado por D. C. Moore ("Not Safe for Work") e com os três primeiros episódios dirigidos por Oliver Hermanus ("Viver") parte do livro "The King's Assassin" (2017), de Benjamin Woolley, centrado na história verídica de uma mãe e de um filho de origens humildes, Mary e George Villiers, que não olharam a meios para atingir os fins na Inglaterra do século XVII.

Mas qualquer semelhança com a ficção também não será: o olhar ácido e polvilhado a humor negro sobre os bastidores da realeza tem condimentado filmes como "A Favorita", de Yorgos Lanthimos, ou a série "The Great" (HBO Max), duas referências recentes e praticamente indissociáveis da saga de manipulação, desejo e ascensão protagonizada por Julianne Moore e Nicholas Galitzine (actor britânico que era um aristocrata de berço em "Red, White & Royal Blue", a popular comédia romântica gay da Prime Video).

Ainda assim, o que "MARY & GEORGE" talvez perca em novidade parece ganhar em convicção e "savoir faire", pelo menos no arranque: a minissérie de sete episódios está a minhas da modorra narrativa e indiferença visual que domina outros dramas históricos britânicos "de prestígio", sendo tão ágil a fazer avançar a aliança entre mãe e filho no jogo de xadrez social como a aproveitar o olhar de realizador de Hermanus nestes ambientes (próximo das personagens sem dispensar a sumptuosidade, equilíbrio para o qual a direcção de fotografia também é decisiva, sobretudo nas vertente sombria das cenas de interiores).

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A meta é fazer de George o favorito do Rei James VI da Escócia e de Inglaterra (Tony Curran), cuja atenção é disputada por inúmeros rapazes da corte e fora dela, tornando o sexo na moeda de troca possível de um retrato em que a luta de classes não se concretiza sem a iniciação carnal. E por aí, "MARY & GEORGE" também pode ser visto como uma variação queer de "Jeanne Du Barry - A Favorita do Rei", o mais recente filme de Maïwenn, ao acompanhar o triunfo de uma figura inicialmente marginalizada enquanto critica a hipocrisia da alta sociedade. Já a relação tensa entre mãe e filho lembra um papel algo esquecido de Moore, "Desejos Selvagens - Savage Grace", interessante e transgressor filme de Tom Kalin que tinha uma disputa familiar no centro (embora fosse substancialmente mais sórdida).

Valendo-se de uma actriz em estado de graça, em modo frio e calculista mas, ainda assim, capaz de conferir vulnerabilidade a uma mulher renegada e movida pelo instinto de sobrevivência (dela e, sobretudo, dos filhos), este drama cáustico convence igualmente nos secundários ou na banda sonora electroacústica de Oliver Coates, aglutinadora de escolas clássicas e contemporâneas e também ela a ajudar "MARY & GEORGE" a distinguir-se de algumas comparações óbvias. 

"MARY & GEORGE"  estreou-se na SkyShowtime a 8 de Março. A plataforma de streaming estreia novos episódios todas as sextas-feiras.