A estalagem dos segredos
Sem acrescentar muito a uma filmografia imponente, "OS OITO ODIADOS" vinca o estilo reconhecível de Tarantino e faz figura de ovni entre o mainstream norte-americano actual (basta contrastá-lo com os últimos nomeados aos Óscares), mesmo que saísse a ganhar com alguma economia narrativa.
Quem nunca foi grande adepto do autor de "Pulp Fiction" ou "Kill Bill" não deverá mudar muito de opinião com "OS OITO ODIADOS". Esta revisitação do western spaghetti (atravessada por uma intriga policial) é praticamente um compêndio dos traços de Quentin Tarantino desde "Cães Danados", com esse primeiro filme a ter descendência na estrutura narrativa de uma incursão pelo interior do Wyoming no pós-Guerra Civil Americana.
Além da auto-citação, cada vez mais evidente na obra do norte-americano, também as piscadelas de olho ao cinema de terceiros continuam a marcar o tom, sem grandes subtilezas (de aventuras no Oeste a "Carrie" ou "Veio do Outro Mundo"), tão presentes como o reforço da violência gráfica, aqui talvez mais desmesurada e cartoonesca do que nunca (e também algo inconsequente, admita-se).
Aceitando essa opção à partida, abrindo caminho para sequências regadas a sangue num mistério onde não interessa tanto quem matou quem mas quem vai matar quem (o desfecho trágico é quase tido como garantido ao início), é difícil não admitir que Tarantino continua a ser um cineasta sem par, até porque joga num campeonato só seu. Nesta oitava prova, não deixa um resultado tão arrebatador como noutros tempos (sobretudo os primeiros), mas sai-se melhor na abordagem a um enredo marcado pelo racismo do que no anterior "Django Libertado", um dos seus filmes mais desequilibrados.
Tal como nesse retrato da escravatura, o novo olhar sobre uma América nascida de contrastes e ressentimentos, com o passado a informar directamente o presente, desenrola-se entre altos e baixos. Só que ao mudar o foco do road movie sinuoso da primeira metade para o (falso) refúgio numa estalagem que serve de cenário único à segunda, Tarantino consegue atirar as personagens para um ambiente de tensão - ou fechá-las numa panela de pressão - com um punhado cenas fortes pelo meio. E algumas são memoráveis o suficiente para compensar a ganga narrativa destas quase três horas ocasionalmente verborreicas, nas quais as personagens falam muito mas não dizem tanto como o realizador parece pensar.
"OS OITO ODIADOS" torna-se mais interessante quando não se preocupa com as ressonâncias sociais do choque de vilões (ou figuras próximas disso), mesmo que os temas que coloca em cena - não só o racismo, mas também a misoginia ou a homofobia - elevem o que por vezes se reduz a uma movimentação de peças num tabuleiro. Felizmente, há personagens (e actores) que se impõem à condição de joguetes, com destaque inevitável para Samuel L. Jackson, Kurt Russell e principalmente a pouco vista Jennifer Jason Leigh, aqui com um raro papel que a deixa mostrar do que é capaz (e é capaz de muito, sendo talvez a figura mais esquiva para o espectador e a que lhe provocará mais sentimentos contraditórios).
Já Tim Roth ou Michael Madsen não têm a mesma sorte, desperdiçados por um argumento menos apurado do que os de outros filmes de Tarantino, apesar de um final que faz valer essa construção narrativa e dramática e de uma realização que sabe aproveitar a vertente quase teatral (a excepção são os maneirismos em câmara lenta, que correm especialmente mal quando o som das vozes é arrastado). Entre as cores turvas, o ranger de portas e o calor da lareira, quase se sente o cheiro a mofo - uma vantagem pelo lado sensorial que um cineasta estimável consegue, não tão bom quando o filme ainda nos deixa a pedir uma lufada de ar fresco na sua obra.