A fim da inocência (num passado melancólico e num futuro distópico)
O adeus à infância inspirou, de formas muito diferentes, dois dos filmes a guardar da edição mais recente da FESTA DO CINEMA ITALIANO. Um saiu premiado, o outro mostra que há sangue novo no cinema de género.
"L'ARMINUTA", de Giuseppe Bonito: O filme vencedor do Prémio do Público desta edição obriga a seguir os passos do realizador de "Manual de Sobrevivência para Pais" (2020), num caminho que se desviou da comédia para o drama.
Ambientada na Itália rural dos anos 70, esta adaptação do romance homónimo de Donatella Di Pietrantonio - autora que escreveu o argumento a quatro mãos, com Monica Zapelli - é a história de uma adolescente que se vê repentinamente devolvida pelos pais à sua família biológica, sendo obrigada a mudar-se de uma vida confortável na cidade para um dia-a-dia precário no campo, habitando uma casa onde os seus irmãos trabalham desde a infância e a palavra do pai é lei (e quem ousa desafiá-la sofre as consequências na pele).
Se o cenário parece desolador, Bonito evita facilitismos dramáticos e deixa um relato coming of age por onde passa a guerra de classes ou de sexos sem que o filme fique refém dos temas que convoca. O olhar parte antes, e bem, da protagonista e das outras personagens de corpo inteiro que vão contrariando os arquétipos sugeridos à partida. O elenco acompanha essa intenção e nem os veteranos nem as revelações falham uma nota - e das segundas, Aurora Barulli e Carlotta De Leonardis iniciam-se da melhor forma na pele da protagonista, tão silenciosa como obstinada, e da sua irmã mais nova, tagarela e protectora (e responsável pelos raros mais oportunos acessos de humor), respectivamente.
Além da solidez narrativa e da direcção de actores, "L'ARMINUTA" convence pelo verismo que o realizador imprime nas figuras e espaços, fazendo com que seja fácil acreditar numa história com uma premissa insólita e que noutras abordagens resultaria rocambolesca. E depois há várias sequências de antologia que confirmam a visão de cineasta: um belo momento de descompressão num parque de diversões, uma cena íntima arriscadíssima (e corajosa, nos tempos que correm) durante a noite e sobretudo uma mudança de tom desconcertante na estrada.
A recta final mantém a inteligência, sensibilidade e precisão de episódios como esses, com uma viragem que está muito longe de um truque de argumento e reforça a coerência temática e dramática do filme. Prémio do Público mais do que merecido, este.
4/5
"MONDOCANE", de Alessandro Celli: O cinema de género esteve bem representado nesta edição pela primeira longa-metragem de um nome que já tinha dirigido várias curtas e episódios de séries. Admita-se que o histórico televisivo talvez até se note demasiado: esta aventura pós-apocalíptica decorrida na cidade costeira de Taranto aproxima-se, às vezes, da lógica visual e narrativa de um episódio piloto mais longo do que o habitual.
Mas felizmente, e ao contrário de alguma ficção científica recente vinda do outro lado do Atlântico, Celli apresenta um filme com princípio, meio e fim, não deixando grandes pontas soltas a explorar em eventuais futuros capítulos. E traz uma história original em vez de mais uma prequela, sequela ou reboot, mesmo que tenha ecos de uma mão cheia de sagas, da distopia de "Mad Max" à crueza de "Cidade de Deus". Um dos aspectos mais curiosos é, aliás, a combinação de códigos do cinema de género com uma e vertente realista, ou até descendente da tradição neorrealista, sobretudo no retrato da pobreza, violência e abandono que domina o quotidiano do jovem protagonista e do seu melhor amigo.
Apesar das muitas cenas de acção, e de um jogo de adrenalina e suspense gerido com desenvoltura até aos minutos finais, o filme nunca perde de vista essa relação de amizade nem os obstáculos que terá de atravessar num mundo sujo (tanto a nível físico como moral), acompanhando dois miúdos que, tal como as irmãs de "L'ARMINUTA", são obrigados a crescer demasiado rápido. Dennis Protopapa e Giuliano Soprano, nos seus primeiros papéis, encarnam a dupla com garra e espontaneidade ao lado de Alessandro Borghi, um dos actores mais confiáveis do cinema italiano recente - a emprestar densidade e ambiguidade a uma figura que podia ser só mais um vilão caricatural.
Outro nome forte é o do produtor, Matteo Rovere (que dirigiu "Il primo re" e a série "Romulus", da HBO), que pode ajudar a despertar outras atenções para uma primeira obra elogiada no Festival de Veneza, no ano passado, e que se juntou agora às boas surpresas da Festa do Cinema Italiano.
3/5